Musk, Ludwig e o espírito do tempo

Claudio Angelo

Elon Musk, fundador da empresa Tesla, que no início de 2021 se tornou o homem mais rico do mundo. Foto: vasilis asvestas/Shutterstock

 

Diz o ditado que por trás de toda grande fortuna há um grande crime. Não sei qual grande crime Elon Musk cometeu, além de ser apoiador de primeira hora de Donald Trump. Mas o fato de o sul-africano dono da Tesla ter alcançado o posto de homem mais rico do mundo no ranking da Bloomberg dias antes da posse de Joe Biden significa.

Biden é o sujeito em quem a humanidade deposita neste momento a esperança de refrear a marcha avassaladora da mudança do clima. Aos 78 anos, capturou como nenhum presidente americano antes dele – nem mesmo Barack Obama – a necessidade de que a Terra tenha um futuro. Promoveu a retomada verde pós-Covid a prioridade de campanha (“reconstruir melhor” era seu lema) e escolheu especialistas na área para seu gabinete. Seu primeiro ato no governo deve ser devolver os EUA ao Acordo de Paris. Só falta agora combinar com o capitalismo.

Os Estados Unidos são o maior produtor de petróleo do mundo. E têm nos combustíveis fósseis, o carvão mineral e o gás natural, a fonte da maior parte da eletricidade que usam para manter o padrão de vida de mais de 300 milhões de pessoas. Essa turma nunca foi conhecida por largar o osso, nem por jogar limpo. E passou os quatro anos de Trump mal acostumada, mandando na porra toda e desmontando uma regulação ambiental atrás da outra.

Se você acha que a Anfavea faz um lobby horroroso no Brasil, não tem ideia do que as petroleiras e as montadoras americanas fazem há muito mais tempo e com muito mais dinheiro. Basta dizer que essa gente inventou o negacionismo climático, mesmo quando suas próprias pesquisas mostravam, nos anos 1970, que os combustíveis fósseis levariam o clima do planeta para o vinagre. Se Joe Biden estiver falando sério sobre ação climática, e vamos admitir que esteja, terá de se ver com esses caras. Já precisou contemporizar nos debates durante a campanha, quando disse que apoiava o fracking (a extração não-convencional de óleo e gás que levou os EUA à independência energética). A Pensilvânia, Estado que lhe deu a vitória, é a terra do fracking.

É, portanto, simbolicamente importante que o homem mais rico do mundo agora seja o sujeito que transformou o carro elétrico num sonho de consumo. A Tesla – que após a crise de 2008 ultrapassou a GM em valor de mercado – mostrou que dá para ser “ecológico” sem abrir mão de nada. Ao contrário, Musk capturou perfeitamente a máquina de fetiches que é o capitalismo e produziu uma máquina-fetiche. Potente, linda, tecnologicamente avançadíssima, exclusiva e não-poluente. Irresistível. Os Tesla neutralizam a crítica mofada feita ao ambientalismo de que se trata de uma ideologia anticapitalista que vai nos devolver à Idade da Pedra. E, se dá para ganhar tanto dinheiro com esses carros, é uma sinalização a mais de que o motor a explosão, essa bênção dúbia do século 20, está mesmo com os dias contados. Com ele, boa parte da indústria petroleira.

Sim, o fim do petróleo já foi vaticinado antes, e os profetas sempre queimaram a língua. A tecnologia sempre deu um jeito de extrair mais óleo e gás e cada vez mais baratos de lugares improváveis, como as profundezas do oceano e o quintal de aposentados na bucólica zona rural da Pensilvânia. E a indústria automobilística grudou feito tatuagem no peito da cultura de massas no pós-guerra, arrastando-se para dentro do século 21.

Agora, porém, atingimos uma limitação matemática simples. O planeta aqueceu 1,25oC desde a Revolução Industrial. Estamos encostando no 1,5oC, limite a partir do qual os efeitos do aquecimento da Terra começam a ficar muito mais difíceis de manejar. 2020 foi possivelmente o ano mais quente da história, mesmo na ausência de um El Niño que turbinasse naturalmente as temperaturas. Para desacelerar o aquecimento da Terra e quem sabe revertê-lo neste século, o petróleo terá de permanecer enterrado (e sim, Brasil, isso vale para o seu pré-sal também, a vida é dura). O motor a explosão terá de morrer antes.

Quatro anos atrás, se alguém me perguntasse qual era a chance de isso acontecer, eu diria que nenhuma. Mas aí veio o “grande reset” da Covid e alguns líderes econômicos começam a enxergar oportunidades nas novas indústrias que ainda não eram páreo para os antigos lobbies. Líderes políticos nos países centrais (China, Europa e EUA) começam a gravitar nesse sentido. Uma vez dado o sinal político, o mercado se move. E o sinal político hoje é emissão líquida zero em 2050. Você dirigirá um carro elétrico muito antes do que imagina. Quem sabe um Tesla. Elon Musk ainda tem muito dinheiro para ganhar.

Se há alguma coisa que o passado ensina é que as mudanças podem ser rápidas. Quando a revista Forbes publicou sua primeira lista dos 400 mais ricos dos Estados Unidos, em 1982, o primeiro homem a ocupar o topo da lista era Daniel Keith Ludwig, cuja fortuna era avaliada em US$ 2 bilhões (Jeff Bezos leva aproximadamente dez dias para ganhar isso). Ludwig encarnava a economia fóssil: tornou-se o homem mais rico do mundo na década de 1960 após ter inventado os superpetroleiros, essas máquinas fantásticas que transportaram o fluido vital que embalou a hegemonia americana no pós-guerra. Hoje ele não teria dinheiro nem para estar na lista da Forbes.

 

 

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Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

 

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