"Quando você é a câmera e a câmera é você"

Marília Garcia

 

Na coluna deste mês, tive uma conversa por e-mail com o poeta Eucanaã Ferraz sobre o seu recém-lançado Retratos com erro. Eucanaã contou um pouco sobre o processo de escrita deste novo volume que está recheado de retratos, roteiros, personagens singulares (teatrais, circenses, às vezes, monstruosos) e um “olho-câmera” que parece atento a tudo. Aliás, deixo aqui o poema final – composto por um único verso apropriado de um anúncio da câmera Minolta – que poderia ser uma espécie de arte poética do livro: “Quando você é a câmera e a câmera é você.”

 

Como foi a escrita de Retratos com erroPensando cronologicamente, ele é o primeiro livro depois da sua poesia reunida (publicada em Portugal, em 2016). Você acha que isso teve alguma influência na escrita dos poemas?

Não diria que a publicação teve uma influência direta na escrita. De um modo geral, acontece assim comigo: um livro anuncia o próximo. Então, há sempre algo que se lança adiante; se há, portanto, continuidade, o aprofundamento daquele traço/anúncio dá ao novo conjunto um caráter diferente. Não se trata de um programa, não sobrevém por planejamento, é mais a consequência de uma insatisfação com o já feito. Movo-me pela força de um desejo que não controlo e que me desperta a curiosidade, quero ver o que vai se passar. A certa altura, percebo o que estou fazendo, e então passo a ter consciência do que parece inevitável. Talvez venha daí a minha permanente insegurança e, muitas vezes, o meu medo. Enquanto não tenho clareza do que estou fazendo, sinto-me perturbado, frágil. Quando, enfim, entendo onde estou, a insegurança passa a ser outra, porque estou pisando num terreno ainda novo. Não é fácil lidar com o que se ignora (um modo de evitar a palavra “desconhecido”). No entanto, é isso que me dá prazer. E não raro, alegria. Se há sofrimento há também exaltação nesse processo. E, por vezes, recusa. Foi o que aconteceu, agora, com este livro. Uma recusa total e dolorosa. Entretanto, acho mesmo que SentimentalEscuta e Retratos com erro formam uma espécie de trilogia, ainda que esse termo, “trilogia”, soe falso, pois não programei isso, ou seja, a possível unidade eu a descobri depois, foi involuntária. Mas este livro, a certa altura, eu o recusei inteiramente. Se estive sempre insatisfeito com os outros livros, com este ocorreu algo mais duro, pois achei que não devia publicá-lo nem publicar nenhum outro, nunca mais. Até que um amigo me disse que eu provavelmente estava vivendo uma espécie de “síndrome da poesia reunida”, que eu precisava me libertar do peso daquelas seiscentas páginas, muito embora eu não tenha vivido o seu aparecimento como um peso, muito pelo contrário. Só que a alegria pode ser imobilizadora também, não é? Fui refazendo o livro, tirando, podando, mas, o principal, é que fui aceitando o que ele era. Acatei a sua violência e a sua dor, os seus erros. Assim, se a poesia reunida não influenciou diretamente a escrita dos poemas do novo livro, exerceu sobre mim um impacto do qual eu não desconfiara e que ainda agora não sei dimensionar. De qualquer modo, não importa mais.

  

Seu livro é composto por retratos que poderiam ser lidos como écfrases e também como micro narrativas e roteiros. Os poemas que fecham cada seção fazem referências a fotógrafos (ou à câmera fotográfica, na última) e também ao longo do livro parece haver uma espécie de "camera-eye" ("que tudo perscruta"). Você poderia falar um pouco sobre a relação deste livro com a fotografia? 

Minha sensibilidade está diretamente ligada à visualidade. Muito embora eu seja muito musical, não só nos poemas, sempre entendi que penso com o olhar. Às vezes nem penso. Apenas olho. Só que quando o visto se converte em escrita, ganha a consistência de algo que se parece com o pensamento. Trata-se de uma aproximação ao mundo por meio daquilo que se dá a ver. Não deixa de ser uma limitação, mas em algum momento eu a aceitei e julgo que minha insuficiência para a abstração e o pensamento puro se converteu em algo que na sua melhor realização é uma intimidade com o mundo, com o corpo do mundo. Daí, sempre me aproximei das artes visuais, do mundo das formas. A fotografia aparece aí. Meus primeiros livros, sobretudo Martelo, o segundo, é muito marcado por essas cenas “congeladas”, fixas. Mas, com o tempo, os poemas foram ganhando mais movimento, não só as cenas passaram a se desenrolar em ambientes abertos e dinâmicos, porquanto os próprios versos foram ganhando uma agitação e um tumulto no nível mesmo da sintaxe. Em Retratos com erro, a ausência de virgulação explícita e a perturbação dos limites entre uma frase e outra são um exemplo desse movimento, disso que posso chamar de alvoroço, que segue vivo mesmo quando a cena parece fixa, ou congelada. É o que se passa na fotografia, não é verdade? O movimento está ali, mas o olho pode apreendê-lo naquele instantâneo. Também devo registrar que, há alguns anos, por uma série de motivos, passei a trabalhar muito próximo de acervos fotográficos e de fotógrafos. Organizei uma fotobiografia da Ana Cristina César e fui curador de exposições de fotógrafos, como o Chichico Alkimin – que trabalhou nas primeiras décadas do século XX – e o Vicente de Mello, um artista contemporâneo. Acredito que tudo isso tenha repercutido na escrita desses poemas e tenha dado um caráter singular ao livro, algo flagrante na referência a certos nomes, como você observou.

 

Alguns poemas trabalham com procedimentos diversos, como apropriação, outros trazem cortes de versos inesperados, numerações não-lineares, repetições, permutas, etc. De algum modo estes poemas me fizeram pensar no sentido da palavra “erro” do título: um erro tecnológico, mais ligado ao bug, que produz uma estranheza na linguagem, uma imprecisão. Assim, o que poderia parecer automático, maquinal acaba se revelando tenso, estranho, sem controle, monstruoso. Faz algum sentido isso? Qual a sua relação com este "erro"?

Só agora, nesse momento, quando vou responder à sua questão, lembro-me de uma passagem de um poema de Desassombro, que pergunta assim: “quanto de erro / é acerto / na fórmula de fingirmos?” Então, acho que já há algum tempo compreendi que, no meu sistema, o erro é algo constitutivo da expressão. O erro tecnológico pode ser, de fato, muito interessante, porque tem a possibilidade de criar arranjos incomuns, e o olhar atento e livre de um poeta pode está apto a se servir daquilo. Mas este tipo de erro nunca me atraiu particularmente, até que, não sei bem por qual motivo, ou porque foram muitos motivos, resolvi escrever “A viagem” [poema que usa o recurso do Google translator]. Um poema como “Flores” [com apropriação de notícias de jornal] foi um exercício de dar metro à escrita das matérias jornalísticas, enquanto a numeração desordenada sugere vazios, descontinuidades, faz flagrante a impossibilidade de construir narrativas coerentes e lineares. Veja só, nesse livro, espantou-me, por exemplo, o número expressivo de poemas metrificados. O metro fixo parece sempre lidar com o concerto prévio, o ajuste, deixando o acaso e o erro em segundo plano, não é? Desconfio que o livro exibe essas duas forças – acerto e erro –  numa espécie de tensão, de acordo, um negócio tão inusitado quanto problemático. Talvez isso se deva ao fato de que a metrificação e qualquer outro cuidado formal, ou ainda, o famigerado rigor construtivo, não me interessa se não puder incorporar o erro. Mas o erro aleatório só me parece proveitoso se exibir algum valor – uma vitalidade que não se limita ao jogo formal – que de fato me interesse, ou seja, que entre com força na expressão de uma verdade. Se for uma revelação, estou pronto para aceitá-lo. Mas o erro, muitas vezes, é o resultado da construção, trata-se, portanto, de um erro planejado.

 

Mágicos, funâmbulos, rainhas, atrações circenses, cortinas se abrindo, reinos, faraós etc – esses retratos de personagens tão singulares (alguns já apareciam em outros livros seus, mas aqui parecem mais “nítidos”) podem trazer certo tom alegórico a alguns poemas. Você poderia falar um pouco sobre essa profusão de personagens e universos particulares e sobre esse possível tom alegórico?

Num certo momento, descobri que os poemas estavam muito marcados por essa teatralidade, algo circense, tragicômica. Tenho a impressão – mas não poderia afirmar com total convicção, e talvez isso realmente nem importe – de que, durante esses anos em que fui escrevendo este livro, o poema “Venham ver - The Two-Headed Lady” funcionou como um palco, que foi atraindo outros personagens. As irmãs siamesas foram convocando outros personagens, sempre estranhos, farsescos, ridículos, aberrantes. O erro, portanto, aparece em três dimensões: no próprio ato de retratar, no retrato final e no retratado. Um amigo, que é um grande diretor de cinema, disse sobre Sentimental que era um livro que recuperava o melodrama. Gostei muito de ele ter me mostrado aquilo. Escuta foi, de certo modo, uma radicalização de tal traço. E Retratos com erro prosseguiu nessa linha, subiu ao picadeiro, que pode ser, por exemplo, o palco de um karaokê no centro de São Paulo, conforme um dos poemas. O Pedro Mexia, poeta e editor português, observou no livro a presença das “circunstâncias brasileiras de agora”. A brutalidade e o horror inspirados pela realidade brasileira estão ali, sem dúvida, mas pertencem ao cotidiano brasileiro desde há muito. Foi o que disse a ele, acrescentando que o clima de violento assombro deve muito também à acachapante realidade dos refugiados, à incontrolável e avassaladora destruição de vidas, paisagens e culturas no leste europeu, à situação eternamente dramática no Oriente Médio. E, no mais, também estão lá nos versos o teatro absurdo das nossas vidas miúdas, os dramas amorosos, as dúvidas quanto a tudo, Deus, o envelhecimento, as paixões, os diálogos impossíveis, a solidão, a morte, esse mal-estar difuso que se abate sobre todos nós, poetas ou não. E os pequenos júbilos. Também observei que, com o livro pronto (restando sempre aquele trabalho miúdo de apara, desbastamento, etc.), percebi que todo ele parecia realmente ter nascido no calor doentio e mortífero das “circunstâncias brasileiras de agora”. Reconheço, neste livro, sua humanidade, alguma capacidade de abrigar aquilo que parece errado, e as siamesas são um exemplo disso. Eu mesmo não me sinto capaz de tamanho acolhimento, sou muito mais egoísta e temeroso do que aquele que fala em meus poemas. Então, gosto de ver nos versos uma habilidade afetiva que toca o assombro do mundo com prodigalidade, com um desassombro de que eu não me sinto capaz. Ter conseguido, em algum verso, dar voz a isso é uma experiência que realmente me estremece. É quando o erro acerta.

 

Como foi a escrita do poema “Viagem”? Achei bastante curioso que a “volta ao português” da parte 1 tenha se convertido, na parte 2, a uma “volta a Portugal”, algo que me pareceu falar um pouco também sobre a sua relação com a poesia portuguesa.

Aconteceu exatamente como eu descrevo no poema. Nesse sentido, ele é também a descrição de seu processo. Depois de decidir para quais línguas eu traduziria os versos, colei-os no tradutor automático; a primeira tradução foi para francês; o resultado foi traduzido para espanhol; e daí para italiano, depois inglês, e para alemão; segui sempre esse método, passando a última tradução para a próxima língua. Depois daquelas mais nossas conhecidas, passei para romeno, filipino, basco, mongol, letão, sérvio e malaio. Por fim, passei do malaio para o português, e essa última tradução – um retorno ao início de tudo, é a segunda parte do poema. Acho que você teve a mesma surpresa que eu: que a expressão “voltar ao português” tenha se transformado em “de volta a Portugal”. Fiquei maravilhado com esse erro. Foi como se o erro da máquina tivesse acertado em algo que eu mesmo não colocara no jogo. Esse acaso, como você bem observou, acabou por apontar minha relação com Portugal e com a poesia portuguesa. Eu não poderia esperar tanto do Google Translator.

***

Viagem

 

1. O texto

Então passei pelo tradutor automático isto que aqui vai.

Como se fosse toda a minha vida

(toda a nossa vida).

Comecei com línguas mais nossas conhecidas:

francês espanhol italiano inglês alemão.

Depois passei para romeno filipino basco mongol

letão sérvio malaio.

Como se as palavras viajassem

(como se viajássemos).

Até voltar ao português.

Toda a minha vida.

Como se viajasse por línguas

para saber o que sobra.

Para saber o que se suporta.

Para testar (o que ficaria de nós depois da volta?).

 

2. A tradução final

Nós viemos aqui como um controlador automático.

Como isso afeta minha vida?

(ao longo de nossas vidas).

Começamos em uma linguagem comum.

Francês Espanhol Italiano Inglês Alemão.

Então eu deixei Romeno Filipino Basco Mongol

Letão Sérvio Malaio.

Parece que esta viagem está sendo executada

(Viagem).

De volta a Portugal.

Toda a vida.

Como ir em uma língua estrangeira?

Do acima.

Saiba o que é o jogo.

Volte para nós.

***

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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