Carlos Ferreira e a abdução de Antônio Conselheiro

Érico Assis

 

Carlos Ferreira tem 149 anos, que completou no último 23 de julho. Aparenta menos, e o Facebook confirma um exagero de cem anos. Ele garante, porém, que é do século 19. Não só diz que é daquela época, mas às vezes ainda vive por lá. Ferreira está na Porto Alegre dos Crimes da Rua do Arvoredo, acompanha a trilha de sangue do coronel Moreira César e ronda a Guerra de Canudos.

Há pouco mais de dez anos, essa fixação combinou com o convite para adaptar Os sertões, de Euclides da Cunha, para os quadrinhos. Ele foi o roteirista em colaboração com um parceiro de longa data, o desenhista e também porto-alegrense Rodrigo Rosa. Os dois passaram cinco dias na nova Canudos, na Bahia, fazendo pesquisa in loco. Lançada pela editora Desiderata, o álbum ganhou o Troféu HQ Mix de Adaptação em 2011. É quase o mesmo álbum que a Quadrinhos na Cia. relançou há poucos meses.

“Quase” porque, além de um prefácio do pesquisador Maurício Hoelz, a nova edição ganhou páginas extras. Nelas, Ferreira e Rosa fogem do texto de Euclides da Cunha e imaginam Antônio Conselheiro passando por uma experiência de abdução alienígena – experiência ligada às pinturas rupestres com que teve contato na sua cidade, a atual Quixeramobim.

Não é a única liberdade que eles se permitiram: há também um encontro entre Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha, contato que nunca foi documentado. Mas tudo serve ao seu fim narrativo. “Nem a abdução é literal. Tem a ver com entender este percurso que Antônio Conselheiro fez, como se tornou um homem místico”, Ferreira me explica. Ele também tem seu lado de místico, como vou descobrir depois.

A abdução não era a única ideia “de gênero” que o escritor queria desenvolver. “Dava para inventar toda uma saga de Antônio Conselheiro, tipo um Lobo Solitário cangaceiro.”

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Ferreira e Rosa eram os piás – moleques, como se diz em Porto Alegre – da Grafar, a Grafistas Associados do Rio Grande do Sul, nos anos 1990. No meio de chargistas, quadrinistas e outras artistas gráficos do sul com longa carreira, como Edgar Vasques e João Mottini, os adolescentes tiravam lições de técnica de desenho e narrativa. Ferreira chegou a ser presidente da associação.

Passou para a televisão. Foi diretor de arte, roteirista e diretor de curtas na RBS, afiliada local da Globo. Num episódio da série Histórias extraordinárias – minidocumentários focados em acontecimento sobrenaturais – organizou um ritual na Ilha do Anhatomirim, em Florianópolis para invocar os fantasmas de soldados gaúchos mortos durante a Revolução Federalista.

Além de Os sertões: A luta, teve outra colaboração com Rodrigo Rosa: Kardec, biografia em quadrinhos do grande divulgador do espiritismo – por acaso, relançada também há pouco pela editora A Chave – e escreveu e desenhou Caos, uma espécie de conto em fluxo de consciência onde ele registra suas andanças por Porto Alegre.

Foi o episódio de Histórias extraordinárias que o pôs em contato com o rastro de sangue do coronel Antônio Moreira César (1850-1897). Homem forte do presidente Floriano Peixoto, Moreira César comandou as tropas que acabaram com a Revolta da Armada (1893-1894) no Rio de Janeiro e, logo depois, com seu prolongamento e mescla com a Revolução Federalista (1893-1895) no sul do país. No massacre de Anhatomirim, 185 revoltosos foram fuzilados a mando do coronel. Mas o método preferido do militar para lidar com inimigos era o que chamava de “gravata vermelha”: a degola.

É o mesmo Moreira César que seria enviado para dar cabo do arraial de Canudos em 1897, após duas incursões militares terem fracassado na repressão ao povoado de Antônio Conselheiro. O coronel acabou morto num dos ataques. O exército manteve o cerco e dizimou o arraial. Foram 25 mil mortos, muitos degolados.

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Na última Flip, em julho – que tinha Euclides da Cunha como autor homenageado –, Carlos Ferreira assistiu à apresentação de Os sertões comandada pelo Teatro Oficina. Quando viu o destaque que o diretor e ator José Celso Martinez Correa deu a Moreira César, sentiu que havia fechado um ciclo na carreira, ou na vida, e já podia esquecer o coronel.

Ferreira ainda mora, às vezes, no século 19, mas não mora mais em Porto Alegre. Mudou-se para São Paulo este ano, segundo o próprio, “aprimorando os seus conhecimentos místicos após o enfrentamento com uma shtriga que quase o matou”.

Estava em Porto Alegre, porém, para o aniversário. Um dia antes, conversamos numa padaria sobre Os sertões: a luta, sobre o linguiceiro da Rua do Arvoredo ter merecido comentários de Charles Darwin e servido de inspiração para Hannibal Lecter, e sobre Serjão, o dono de bar que lhe conseguiu um quarto em Paraty, na Flip. Disse que nunca se sentiu um “autor negro”, mas que os retrocessos no Brasil têm feito ele prestar mais atenção na cor da pele. Está trabalhando em um livro sobre uma amiga, Marcia Schmaltz, intérprete de chinês que trabalhou com o presidente Lula e que faleceu em setembro de 2018.

Caminhamos da padaria no centro até o Parque da Redenção. Estava chovendo, então ele, bom homem do século 19, trocou seu terno por um gabardine que trazia na mochila (a mochila era deste século). Recebi o convite para o aniversário de 149 anos, que também seria lançamento de Os sertões e “um ritual a Inanna”. Não sei quem é Inanna, então a Wikipédia me explica que é uma deusa suméria. Talvez ele não seja do século 19, mas de antes.

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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

 

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