“Déjala llorar” (três objetos)

Marília Garcia

Três objetos. Gostaria de pensar que são objetos “da pandemia”, mesmo sendo um de 1960, outro de 2007 e só o terceiro de 2020. Os três têm me acompanhado durante esses meses e, cada um ao seu modo, têm me ajudado a passar os dias, a modificar a maneira de ver as coisas. Vou falar de cada um cronologicamente.

O primeiro é um poema do Augusto de Campos chamado “Caracol”.

Eu o conheço “de ouvido”, por meio de uma gravação do poema nas vozes do próprio Augusto de Campos e da Lygia Campos. Abaixo o poema:

(Viva a vaia: poesia, São Paulo: Perspectiva, 1979)

 

Ele é composto por uma única frase que vai sendo repetida ao longo das 15 linhas mas que, desde a primeira, não cabe inteira no verso, então passa para a linha de baixo e, assim por diante, até que não identificamos mais onde começam frase e linha. Na leitura de Augusto e Lygia Campos, a primeira voz do poema diz apenas “colocar a más/cara colocar /a máscara” e, ao repetir a frase, a palavra “máscara” emenda em “colocar” e de dentro delas sai um caracol que, a cada volta, está ali, espreitando, se deslocando lentamente. Na gravação é a segunda voz que dá destaque à palavra “caracol” -- ou melhor, aos seus rastros deixados por cima da outra voz

O poema, de 1960, estava a anos-luz de distância da era das máscaras da pandemia. A máscara dele apontaria para a persona poética ou para as máscaras do teatro grego? “Masca”, do latim medieval, também tem o sentido de espectro. Quais fantasmas se escondem por detrás das máscaras? Hoje em dia, são tantos... Se estamos agora imersos no gesto repetido de colocar a máscara, por outro lado, o poema traz a imagem do caracol, lento, tentando se deslocar aos poucos pelas frestas das palavras.

O segundo objeto é uma instalação da artista colombiana Doris Salcedo feita na Tate Gallery, em Londres, em 2007, que vi só pela internet mas as imagens eram tão impactantes que tenho a estranha sensação de ter estado lá na época. Salcedo criou uma enorme fenda no chão da galeria, como se a estrutura do prédio (antiga central elétrica) estivesse rachando (por um terremoto?). A fenda tem 167 metros de extensão e em alguns pontos chega a 30 centímetros de abertura. Não tenho certeza do motivo para essas imagens me assombrarem justo agora, a não ser o mais óbvio, o fato de estarmos sem chão, vendo as coisas ruindo. A própria obra traz alguns mistérios, como o título. “Shibbollet” é uma palavra hebraica que significa ao pé da letra “espiga” mas que, segundo conta uma passagem bíblica, também era usada como senha pelo povo judeu pois era uma palavra de difícil pronúncia e acabava evidenciando, pela sua pronúncia correta, os que pertenciam àquela comunidade.

O terceiro objeto é o curta-metragem República, da atriz e dramaturga Grace Passô, feito nestes meses de isolamento, que faz parte de uma série de filmes da pandemia do IMS. O filme de 15 minutos tem uma estrutura em abismo na sua forma que dá um sentido espantoso ao topos da vida como sonho: começa com um sonho, depois é um filme sendo gravado, depois é o filme que estamos vendo, mas que acaba incorporando elementos do sonho e do filme do filme, criando uma camada extra de absurdo. Por fim, o abismo acaba engolindo o próprio espectador, já que a história narra o momento em que anunciam uma descoberta científica que comprova que o Brasil é um sonho de alguém, o país não existe (o resto do mundo, sim). A vertigem dessa estrutura está em sintonia absurda com a vertigem que vivemos agora com tantos abismos, fendas e espectros. Também o duplo da atriz -- que estava no filme dentro do filme aos gritos na rua e aparece depois em carne e osso dentro da casa dela (revelando só aí seu caráter de doppelgänger) -- traz uma complexidade à atmosfera de sonho (ou pesadelo) e também à leitura que podemos fazer do curta. O Brasil é um sonho, é esta a realidade absurda. “Déjala llorar”, diz Passô, de modo comovente, por meio da canção que fecha o filme, na voz da colombiana Etelvina Maldonado.

 

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Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

 

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