A não vocação de ser mãe

Por Taize Odelli (r.izze.nhas)

 

Quando eu completei dois anos de idade, ganhei uma boneca de uma das minhas madrinhas. Segundo relatos da minha mãe, era uma boneca daquelas que choravam, e ao abraçar o brinquedo e ouvir aquele objeto inanimado abrindo o berreiro, eu joguei ela longe, assustada.

Eu gostaria de dizer que foi nesse momento que decidi não ter filhos, mas óbvio que isso seria um exagero – eu sequer lembro dessa boneca ou da cena em si. Mas posso usar esse episódio para mostrar que mesmo uma menina de dois anos de idade já é vista como uma futura mãe. Já se espera de uma menina de dois anos o instinto materno de acolher a criança chorando – instinto que eu logo mostrei não ter.

Se com uma criança é assim, imagina com uma adolescente? Imagina com uma mulher adulta? Só imagina? Toda vez que o assunto “filhos” surgia na família, minha opinião era bem taxativa: não vou ter, não quero. Opinião seguida de “ah, mas você vai mudar de ideia”. “Ah, toda mulher quer ser mãe”. “Ah, você vai ver, quando as amigas começarem a ter filhos, você vai querer também”.

Pois aqui estou, prestes a fazer 30 anos e ainda querendo não ser mãe. Parei de ouvir esse tipo de comentário da família, felizmente. Mas nós mulheres, como um todo, não paramos de ser questionadas sobre os filhos durante toda a vida, todos os dias. A ponto de começarmos a pensar seriamente se não tem algo de errado com a gente que não quer ser mãe.

O romance Maternidade, da canadense Sheila Heti – uma das convidadas da Flip 2019 –, é um livro que explora muito bem a discussão sobre ser mãe ou não. Pela primeira vez na minha vida de leitora, encontrei uma história que tratasse tão abertamente sobre essa falta de vontade de ser mãe.

Mistura de ficção e ensaio, o livro é uma investigação que a autora faz sobre a maternidade. Não a maternidade que vive, mas aquela que poderia viver. Prestes a completar 40 anos, a narradora se vê obrigada a decidir se ela quer ter um filho ou não – obrigada por ela mesma e pela sociedade que a rodeia. Seus anos “férteis” estão acabando, esperar tornaria a gravidez algo difícil e de risco, então ela precisa tomar logo essa decisão. Mas ela nunca quis ser mãe, filhos nunca estiveram nos seus planos.

Escritora já publicada, no início de Maternidade a narradora está às voltas de um novo livro, algo que ainda não sabe ao certo o que será. Até que o namorado sugere que ela escreva sobre essa questão da maternidade. A narrativa, então, passa a se concentrar nisso, nas dúvidas da protagonista sobre ter um filho, nos sentimentos que afloram quando vê suas amigas com bebês, quando pensa no seu namorado, quando lembra do passado e da sua própria mãe.

Como uma pessoa meio perdida nas decisões que tem que tomar, a narradora apela para a arte da adivinhação do I Ching. Jogando três moedas (duas ou mais caras = sim; duas ou mais coroas = não), ela constrói a linha narrativa e embasa suas escolhas no que esse misterioso oráculo revela. Claro, ela não leva isso tão a sério, ela não faz exatamente tudo o que as moedas mandam, mas é uma maneira de encontrar um conforto e um guia nesse turbilhão de dúvidas pelo qual passa. Esta é uma das principais características do humor de Sheila Heti no livro, como ela questiona o oráculo e as conclusões que vai construindo com a ajuda dele.

Pensar na maternidade é pensar nos dilemas éticos de se colocar uma vida no mundo, dilemas muito bem apresentados pela autora. Mulheres que não querem ser mães muitas vezes são acusadas de egoísmo. O egoísmo de não querer abrir mão das suas vontades, suas liberdades, para dedicar sua vida à criação de uma nova vida. Eu me sinto egoísta por não querer ser mãe, Sheila Heti se sente egoísta pelo mesmo motivo.

Mas colocar um filho no mundo não seria também uma forma de egoísmo? O que a narradora apresenta é uma outra visão desse egoísmo da maternidade, onde o filho traz para a mulher um sentido para a sua vida. Preenche um espaço dela, é um agente direto da sua felicidade e satisfação.

Não são poucos os exemplos que Heti apresenta de pessoas que tiveram filhos para salvar um relacionamento, para validar um amor ou para evitar um futuro arrependimento de não ser mãe. São motivos que, na concepção da autora, também são egoístas, pois se baseiam em vontades próprias de encontrar a felicidade ou de solucionar os problemas emocionais por meio de outra vida. Quase como quando fazemos uma boa ação não pela boa ação, mas pela satisfação pessoal que esse ato nos traz. Que direito o homem, a mulher, a Igreja ou o Estado têm de colocar outra vida no mundo? Uma vida que não pediu para estar lá?

Outra questão que Sheila Heti traz sobre as motivações da maternidade diz respeito ao relacionamento da narradora com o seu namorado, Miles. Quando pensa em ter filhos, ela não está realmente imaginando como é engravidar, dar à luz e cuidar de uma criança. Ela está pensando no ato de fazer o filho, no sexo que quer ter com Miles, e a possibilidade da maternidade surge nesse momento como uma prova desse desejo que ela tem por ele. O filho, nesse caso, é algo secundário, não é a motivação principal de uma gravidez.

Mas o que mais pesa na decisão da protagonista é a relação com a sua mãe. As memórias que ela tem como filha não são as mais felizes. A visão que ela tem da maternidade é de uma mãe afastada, focada no trabalho, feliz quando está nele e triste quando está em casa, com frequentes crises de choro.

Não que a mãe odiasse a maternidade, nem que ela se sinta desprezada como filha. O que a protagonista entende é que sua própria mãe não possuía essa vocação para ter filhos, e se ressentiu a vida toda por isso. Uma tristeza de não dar para os filhos o amor que ela achava que deveria dar. Como uma mulher também focada no trabalho – nos livros –, a narradora antecipa o futuro como mãe baseada no seu passado como filha. O que seu filho sentiria se a visse chorando todos os dias, sem saber se a culpa era dele, sem saber o que se passa na cabeça dela?

Todas essas questões apresentadas por Heti são pensamentos que eu mesma já tive quando tento encontrar motivos para justificar minha falta de vontade de ser mãe. E é difícil explicar esses sentimentos e organizá-los em um discurso claro sem cair na insensibilidade. O grande mérito da autora é esclarecer todos esses argumentos e ainda permanecer sensível ao que a maternidade significa. Claro que ser mãe é uma experiência incrível, que o amor que se sente por um filho é maior que qualquer coisa no mundo. Mas passar por essa experiência incrível não é um desejo obrigatório a todas as mulheres – do mesmo jeito que não é um desejo obrigatório dos homens.

Maternidade é uma análise objetiva do conflito de Sheila Heti com a questão dos filhos. Mesmo com os hormônios aflorando, encantada com os bebês dos amigos e doida para provar seu amor por Miles, sua investigação sobre a maternidade é clara e sensata. E de forma alguma ela despreza a maternidade das outras mulheres, ou enxerga os filhos como uma infelicidade. Mas a análise profunda de suas motivações, levando em conta seu contexto pessoal e o contexto social, político e econômico em que vive, colocar mais uma vida nesse mundo não seria a coisa mais sensata a se fazer. De certa forma, não ter um filho é, também, pensar no bem dele.

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Taize Odelli é formada em jornalismo, trabalha com redes sociais e é autora do blog r.izze.nhas e da newsletter sou meio vagabunda, mas sou boa pessoaInstagram

 

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