A língua que escolhe

Noemi Jaffe

Foto: Shutterstock

 

Como um escritor deve se posicionar diante das contrariedades reais? Ele deve se posicionar? E, se sim, publicamente ou pela ficção?

Vou dizer somente o que eu penso, sem querer, com isso, me colocar em nome dos escritores ou da literatura.

Acho que escritores, assim como qualquer outra figura pública, devem sim se posicionar sobre acontecimentos reais que impactam a vida da sociedade, especialmente quando são negativos (caso sempre mais frequente). Penso que é uma necessidade ética que pessoas em quem o público confia digam o que pensam e se disponham a resistir, da forma que for possível, contra aquilo em que não acreditam. Esse posicionamento, na minha opinião, precisa ocorrer publicamente: nas redes, nas conversas, nos jornais, nos cursos, palestras, artigos, colunas, militância, manifestações, indo aos locais necessários. Cada escritor decide o que é melhor e possível para si. 

Essa é a face pública do escritor.

E na ficção? 

A ficção é, em primeiro lugar, privada, mas com um olho na publicação, que, o nome não é coincidência, tem a ver com o público leitor. É de se pensar muito, portanto, se a ficção é pública, privada ou ambas. Penso na terceira opção. A ficção se localiza num território combinado, entre o real e o imaginário, entre o verdadeiro e o fabulado, entre o público e o privado e isso é constitutivo de suas práticas e manifestações. Quem escreve, o faz em condições solitárias e deve fabular livremente, sem compromissos sociais ou políticos, embora eles estejam necessariamente atrelados à linguagem. E o escritor precisa saber dessas vinculações; não pode escrever sem essa consciência. Quem lê, também o faz solitariamente, projetando e identificando a leitura com sua vida e emoções. O bom leitor, entretanto, está conectado ao seu tempo e, inevitavelmente, estabelece relações entre o que lê e o que acontece.

A língua é, fundamentalmente, viva, e o escritor deve escrever nessa dinâmica das transformações linguísticas, num texto que fala num tempo intencional e não num tempo universal e fixo (que, aliás, não existe).

Penso que, consciente dessas limitações - seu tempo, sua língua, as fronteiras instáveis entre público e privado - todo escritor pensa e escreve sua ficção de forma política, mesmo que esse conteúdo não seja explicitado. 

Já se disse inúmeras vezes que somente o fato de se escrever em literatura já é político, por ser um gesto subversivo, não utilitário, num tempo em que tudo é cada vez mais valorizado pela função que exerce. Assim, uma língua menos funcional e finalista seria necessariamente política. Concordo, mas acho que não basta, uma vez que esse argumento tem sido usado de forma esvaziada e arbitrária. Só escrever ficção não é suficiente. O escritor deve ter o máximo de consciência possível sobre suas escolhas: temporais, espaciais, de personagem, de voz, de língua, de foco narrativo e saber quais são as implicações narrativas, estéticas e éticas de cada uma delas. Escolhas que, por sua vez, não precisam ter nenhum conteúdo claramente relacionado ao real. Podem não ter absolutamente nenhum vínculo perceptível com os acontecimentos recentes ou antigos. Mas precisam ser lastreadas com "intencionalidade". 

Dessa forma, com o respaldo da intenção e da consciência, o texto ganha vitalidade e dinâmica e o leitor sabe e sente, mesmo sem precisar se deter sobre isso, que o que lê está carregado (como uma pilha) de verdade autoral. 

Isso é político e claro. O leitor reconhece e se reconhece no que lê e o autor está se posicionando por suas escolhas narrativas. 

E política é, no mínimo, escolher com clareza.

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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

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