Poesia é som. Poesia é ritmo.

Marília Garcia

Universal History Archive/UIG via GettyImages

Lembro do som chegando antes das palavras, saindo da vitrola que ficava ligada na minha casa da infância. O chiado da agulha fazia parte deste som e acompanhava as vozes, os arranjos, as melodias. Era a poesia chegando pelo ouvido, na voz de Tom, Nara, Chico, Caetano, Paulinho, Elis, Milton, Sueli Costa... Antes de entender o sentido das letras, as palavras ficavam gravadas “de cor” (isso é, “de coração”, by heart, por esse sentido que se aproxima da emoção). Na infância, ouvimos primeiro os sons. Na infância (de in-fans, sem fala), quem chega primeiro é o significante. “A porta dela não tem tramela, a janela é sem gelosia”. “Na praia de dentro tem areia; na praia de fora tem o mar”. “Hoje eu quero apenas

uma pausa de mil compassos.”

Silêncio para ouvir.

Ao escrever meu primeiro livro, achei que havia uma dimensão sonora nele e por isso decidi chamá-lo de 20 poemas para o seu walkman. Pensava na ideia de recolher vozes de lugares diferentes, como se estivesse andando e registrando os sons que “mixaria” para o leitor ouvir no walkman. De algum modo, achava que havia musicalidade naqueles textos, mas nunca tinha lido nada em voz alta naquela época. Quando o livro foi publicado, tentei ler os poemas em público, mas minha leitura não funcionava, sempre saía torta. A sintaxe dos poemas era estranha, o ritmo, entrecortado. Alguma coisa ali me obrigava a não dar voz aos poemas, a mantê-los num walkman “imaginário”, para leitura silenciosa. Na mesma época, o músico Rodolfo Caesar fez uma peça musical em cima de um poema e o diálogo com ele me trouxe muitos elementos para pensar na relação entre poesia e som.

Depois deste livro, passei os dez anos seguintes escrevendo os textos que entrariam no Câmera lenta: lia em voz alta, modificava, apresentava em performances, ia transformando os poemas ao vivo. Como havia de fato esta preocupação com a leitura, ela aparece tematizada como uma das questões do livro. Quando ele ficou pronto, achei que havia uma dimensão do sonoro naqueles poemas.

Até que recentemente participei do “Instrumental poesia”, no SESC, série que propõe diálogos entre músicos e poetas. A parceria que fiz foi com o Capim novo, coletivo de compositores e músicos que trabalham com música erudita contemporânea, experimental e popular. Selecionamos 7 poemas do Câmera lenta e eles compuseram peças a partir dos textos montando um espetáculo de 45 minutos. A ideia que eu tinha até então de musicalidade evaporou completamente e ainda não sei como falar sobre isso. Mas a experiência desse encontro me levou para aquele momento sem fala (in-fans), em que de repente estamos dentro da música, encostando nos sons produzidos, momento em que o sentido das palavras chega de outra maneira e por outras vias – em que o significante vai nos conduzindo: os sons se espalham, às vezes com chiados, “ataques”, ecos, ápices, ondas, silêncios que se alternam, ritmos, timbres e melodias que transformam o espaço. De modo coletivo. A relação com o som e com o ritmo foi recolocada, atualizada. A relação com o poema também.

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Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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