O número 3 e o divórcio

Noemi Jaffe

Pasta de dentes; sabão em pó; café; brócolis; tomate pelado; desinfetante; melancia; 3 kg de farinha de trigo. Foi o número 3 antes da farinha. Ainda conseguiu fazer as compras, chegar em casa e descarregar. Mas, na hora do jantar: “estou indo embora. Hoje já não durmo mais aqui.” Ele perguntava, perguntava. E ela: “Foi o número 3”.

 

O número 3, antes do item “farinha de trigo”, na lista de compras dessa personagem que, certamente, é uma dona de casa, provocou uma “epifania”: tinha chegado a hora de ela se separar do marido.

Mas, afinal, o que vem a ser “epifania”?

A palavra é grega e, na origem, significa “revelação”. Com o tempo, foi apropriada pelo cristianismo e é até hoje usada em sacramentos religiosos para se referir à revelação de Cristo. Mas o que nos interessa, aqui, é sua incorporação pela literatura, cuja subversão laica se desenvolveu especialmente com James Joyce, para depois ser utilizada largamente ao longo do século XX. No Brasil, a autora que levou a epifania à maior frequência e profundidade é Clarice Lispector. A torção realizada por Joyce rebaixou o uso sagrado da epifania para uma revelação banal, a partir de um acontecimento banal, mas que pode causar uma transformação subjetiva importante tanto no personagem como no próprio leitor.

Isso já foi muito discutido e teorizado, mas gostaria de desenvolver uma face da “epifania” ainda não muito explorada. É sua “intransferibilidade”, sua relatividade. É isso que a envolve em mistério e é isso, entre outras coisas, o que a torna encantadora, tanto como recurso literário ou como experiência de vida.

Voltemos ao número 3, antes da farinha. Milhares de donas de casa fazem listas de compras e vão a elas, munidas de suas listas auxiliares. Essa mesma dona de casa do conto já deve ter feito listas quase idênticas e ter ido ao supermercado centenas de vezes, referindo-se à lista para comprar.

Por que diabos, hoje, justamente hoje, a olhadela para a lista a incomodou? E por que foi o número 3 e não outro item o que a fez tomar a decisão de se separar do marido? E por que não foi outra coisa, mas sim uma lista de compras, o que a fez conhecer algo que certamente a incomodava há tempos, mas que ela não tinha tido coragem de confrontar?

Muita gente talvez não entenda o porquê do número 3 tê-la feito saber, peremptoriamente, que não haveria volta nessa decisão. Outros entenderão imediatamente e não colocarão em dúvida a verdade dessa mulher. Por quê? O que os diferencia?

A epifania é uma revelação circunstancial, banal, casual e momentânea. Nada pode prepará-la e, ao contrário, preparar-se para ela é recusá-la ou impedi-la. Entretanto, de alguma forma, é preciso ter algo dentro de si que se dispõe para a epifania. E, quando ela ocorre, ocorre só para aquela pessoa e só naquele lugar e momento. Não é muito fácil explica-la e, muitas vezes, é desnecessário. Quem a experimenta, entende e ela se torna óbvia. E a relação entre o número 3 antes da farinha e a separação desse marido, que a leitora já deduz ser parceiro em um relacionamento frustrado, se torna absolutamente evidente.

Também pode ser que essa mesma mulher, diante do número 3, apenas pensasse que gostaria de se separar. Apenas sentisse e, em seguida, mantivesse as compras e o casamento. É o que acontece regularmente em Clarice Lispector. A epifania não precisa levar a mudanças radicais. Basta um relance. Uma pequena epifania e essa mulher continua a mesma, sendo outra.

Ela suspira, quieta. Outras epifanias virão.

 

***

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

Neste post