A Samba

Noemi Jaffe

 

Tantas coisas, ao longo dessa quarentena (cinquentena, sexagentena, inumeravelena), tem passado para o campo do indizível, que fica difícil saber o que, nesse intervalo, é possível expressar. Mas dentre todas essas coisas intraduzíveis, quero falar da Samba, minha cachorra.

Nos olhos dela me consolo. As pupilas bem no centro, mirando reto nos olhos de quem a olha, acreditam. Sem nenhum predicativo, elas acreditam. Essa confiança sem preposição e sem regência toda noite me prepara para mais um dia de confinamento. Me aproximo para dar boa noite e ela se entrega, virando-se de barriga para cima e oferecendo o corpo para que eu o acaricie. Passo minha mão por tudo e quem é acariciada sou eu: por seu pelo farto e macio, por seu abandono a minha mão. Passo os dedos fortes pelo rosto e ela fecha os olhos com agrado. O rabo, que se abanava, se aquieta e tudo nela e em volta silencia. Aproximo meu rosto do dela e ouço só a respiração, longa e tranquila, com um suspiro pesado no entremeio.

Nenhuma palavra bonita combina quando tento falar sobre ela: disse “entremeio”, mas me arrependi. Para falar dela, é como se só pudesse dizer “água”, “pão” e “casa”. Então digo: Samba água, samba pão, samba casa.

A palavra “amor” foi carregada, historicamente, de conteúdos infindáveis. Preciso esvaziá-la de todos eles para falar da Samba. Preciso da palavra “amor” sem nada dentro, como a flor de João Cabral, que é apenas a palavra flor.

Depois que ela termina de comer a ração, sabe que vou dar dois biscoitos. Ela se achega e fica me olhando, tesa e com o rabo abanando, torcendo a cabeça na direção do armário onde fica a lata de biscoitos. Quando me levanto para pegá-los, ela mal contém a euforia e excitação, eletrizando o corpo inteiro na direção da prenda. Depois que ela pega, leva para sua almofada, sua pequena casa onde tanta coisa acontece. Seu esconderijo, janela, abrigo, consolação, zona de experimentação de comida, canto. Na almofada ela se enrola e fica pequena ou se espalha e parece um bezerro. Quando olho para ela, estendida no chão, às vezes me lembro de uma cadeia de montanhas, outras de um cavalo adormecido. Ela é minha cordilheira.

Também não quero metaforizá-la. Quando digo “ela é minha cordilheira”, não quero me referir a isso como uma representação. Digo que é a cordilheira mesma, cadeia de montanhas me escorando dos medos e nojos. Todo o nojo que sinto pelo governo, pelas calamidades comezinhas, se dilui diante do tamanho dessas pupilas crédulas. Alguma coisa sempre resta além, aquém da minha mentira e da minha verdade, num lugar onde o que se diz é menor do que o que não se diz.

Quando acordo e desço as escadas para a cozinha, ela está no pé da escada, esperando, com as patas cruzadas, como uma “lady”, quando, na verdade, ela está mais para “vagabunda”. Assim que eu chego, ela pula, corre, galopa, abraça e vai na direção da porta, pegar o jornal. Por que conto isso? Todos os cachorros fazem assim. Não sei por que conto. Não sei nada do que conto, nem os porquês, quando se trata dela. Sinto que simplesmente dizer o que ela faz vai fazer com que todos reconheçam sua singularidade. Poderia escrever esse texto somente assim: a Samba come, dorme, pula, gosta de bolinha e de carinho. E fim.

A Samba e minha dificuldade de dizê-la têm sido o reverso da quarentena: ela me lança para o mundo, para o que não posso ser, para o que sou. A Samba está fora da linguagem e agradeço a ela por isso.

 

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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

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