As últimas fotografias

Djaimilia Pereira de Almeida

FOTO: Djaimilia Pereira de Almeida 

Fotografei a casa dos meus avós meses depois de eles terem morrido, semanas antes de ela ser vendida. Era uma casa que não estava destinada a ser vista vazia. Apenas tinha estado assim cerca de trinta e cinco anos antes, quando a compraram e a mobilaram pela primeira vez.

Senti-me diante de uma pessoa despida, caminhando por ela sem o seu consentimento. As salas revelaram-se não como as conhecia, mas mais amplas, mentirosas. Ouvi o eco da minha voz dentro do quarto que havia sido meu, quando não era suposto ter ouvido nada.

As fotografias são fiéis ao que vi e, no entanto, são uma falsificação. Mostram o móvel da sala ainda por desmontar, única peça restante, e caixilhos de alumínio negro em janelas de correr. A varanda, de onde ninguém tirou os mesmos vasos de há duas décadas, a altura em que a minha avó se passou a enganar nos nossos nomes quando connosco conversava: Lucinda, não, Lucinda não, desculpa, Lucília, não desculpa, ai, sim, Djaimilia. Mostram os azulejos da cozinha, onde pequenos ramos de plantas a azul ornamentam uma quadrícula cinzenta.

Respeitam a luz da cozinha, coada por uma varanda pintada de um salmão acastanhado, enlameado, sujo pelo tempo. Os móveis da cozinha, de pinho nunca envernizado de novo, a caixa negra da despensa refractando a luz que vem do hall onde, sentados a uma pequena mesa, se faziam as chamadas telefónicas através de um grande telefone fixo negro conferindo os números numa agenda preenchida à mão pela minha avó, e por ela corrigida. O corredor dos quartos abrindo-se para misteriosas portas entreabertas nos quais a alcatifa de 1985 deu lugar a um soalho flutuante, adjectivo indicado para o que sinto ao escrever estas palavras. (Ela desenhava o A, um triângulo isósceles, e depois, voltava atrás e sublinhava as arestas fazendo muita força na caneta, o que borrava todos os seus apontamentos, e também a agenda telefónica.)

Porém, apesar de serem fiéis, as imagens são mentirosas e não merecem senão ser rasuradas e corrompidas, como Robert Frank rasurou os seus negativos em The Lines of My Hand, a sua autobiografia fotográfica, publicada em 1972, tatuando neles estar farto de despedidas (“sick of goodby’s”) numa caligrafia que sangra.

Elas demonstram na minha vida, a total falência das imagens e, por conseguinte, da memória e do seu enredo. Nada dizem do que foi vivido dentro da casa dos meus avós, nem do que a casa ainda comportava no limbo em que a visitei nesse dia, já sem mobília, sem gente. Inclementes, excluem-me sem misericórdia desse lugar que talvez nunca tenha existido, o lugar de uma longa reforma, das doenças e das alegrias fugazes da velhice. Tornam tudo tão limpo que chegamos a pensar que foi tudo bom, mesmo que estejam sujas como suja estava a lente da máquina, o que não conseguíamos perceber, ainda que estejam escuras como a casa estava nesse dia frio em que a visitei pela última vez.

A casa vazia foi, contudo, a casa que encantou os meus avós quando a compraram. Tê-la-ão achado espaçosa, auspiciosa. Terão feito planos sobre como a haveriam de mobilar, como haveriam de ser felizes nela. A circunstância de, no fim, ela ter sido esvaziada permitiu-nos vê-la como apenas eles a viram e partilhar um pouco dessa visão do que era então o futuro. As fotografias mostram os seus sonhos, na sua imponderabilidade, vistos do passado e depois mastigados pelo futuro, as curvas, os declives, as depressões, os revezes, os fumos, os vapores de eucalipto que escureceram as paredes, e nos envelheceram e mataram aquele tempo.

Elas não os mostram jovens de novo, mas revelam-me o que eles viram deixando-me ver o futuro visto do passado. As quatro assoalhadas onde passariam o resto da sua vida, quando a morte era ainda uma miragem. Visto agora, no momento em que a elas regresso, o futuro apenas se deixa ver quando fomos derrotados, e talvez seja sempre assim. Talvez paguemos sempre a nossa ousadia e a nossa presciência com a derrota.

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Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em 1982. É autora de Esse cabelo (2015) e de Ajudar a cair (2017). Vive em Lisboa.

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