Uma fotografia com Mariam

Djaimilia Pereira de Almeida

Conhecemo-nos no escritório. Não sei que idade ela tem, nem quando chegou a Portugal. Se tem filhos ou não, nem onde vive. Mal nos entendemos, porque quase não fala português. Pedi-lhe uma fotografia e, à primeira, recusou. "Hoje não tou bonita". Fiquei encabulada, fingi que não tinha dito nada, baixei os olhos. Da segunda vez que me meti com ela, falou mais um pouco. "Caboverdiana, são-tomense?", perguntou-me com um olhar desconfiado, tentando adivinhar de onde eu era. "Angolana", disse eu. E ela, um pouco menos tímida, "Angolana? Eh, não parece". (Adivinhar a origem uns dos outros é um dos grandes divertimentos dos africanos na Diáspora.) "Posso tirar-lhe uma fotografia?". Não me respondeu. Ficámos as duas nervosas, como se a minha pergunta nos tivesse revelado implicadas uma com a outra. Ela passou o espanador pelas mesas à minha volta, e desapareceu. Devemos ter a mesma idade, pensei, talvez seja mais nova. Não sei nada sobre Mariam e ela não sabe nada sobre mim.

A fotografia foi tirada no quinto encontro. Mariam trazia umas argolas douradas e o cabelo amarrado num lenço azul-turquesa. Ajeitou o lenço e olhou para a objectiva com uma cara séria. Nunca tínhamos estado tão próximas, ombro com ombro, cabeça com cabeça. Perguntei-lhe o nome, que ainda não sabia. "Mariam: sou da Guiné Conacri." Ser mulher não torna mais fácil o acto de fotografar, nem de abordar, uma mulher. De um instante para o outro, vamos de companheiras a abusadoras, de uma suposta proximidade à indiscrição. Os outros acham que estamos bonitas quando sabemos que não estamos. Eles vêem alguma coisa que não conseguimos ver e nós vemos o que os olhos deles não conseguem ver. Tudo culmina na recusa de Mariam: "Hoje não tou bonita". As suas palavras são um travão e, ao mesmo tempo, respondem ao atrevimento com uma generosidade reveladora. Para se recusar, ela viu-se forçada a permitir que eu soubesse da sua recusa.

Vejo Mariam todos os dias da semana. A fotografia não mostra o arco das suas costas, as mãos grandes, o olhar assustado, mas doce. Não está acostumada a que reparem nela. Quando nos cruzamos, ela sorri-me como se tivéssemos partilhado um segredo. Tratamo-nos pelo nome; sabemos que segredo é esse. Sei agora que tem três filhos, todos rapazes. Trinta e oito anos ("Você trinta e seis? Eh, tá bonita."). A coisa mais pessoal que partilhámos não foi a fotografia, mas a recusa dela em deixar-se fotografar e o nosso desconforto depois dela, com o qual convivemos durante várias semanas como se nunca tivéssemos trocado uma palavra. Ela limpava as mesas à minha volta e eu fingia que não era comigo, víamo-nos de passagem pelos corredores, mas por dentro eu estava ansiosa como se tivesse pisado o risco. Mariam dera-me acesso à sua recusa. Um ‘não’ é uma intimidade; mais intimidade do que Mariam gostava de partilhar comigo.

A fotografia foi o pretexto que nos revelou próximas. Foi Mariam que decidiu que a podíamos tirar. Olhámos uma para a outra e falámos quase ao mesmo tempo. "Fotografia?", disse eu. "Sim. Hoje dá", disse ela com um sorriso. Hoje estamos bonitas, quis ela dizer-me, caso eu não tivesse reparado. Mariam deixou-me à espera. Fez-me vê-la pela primeira vez e ver-nos a ambas no mesmo plano. Vamos pelo mundo sem sabermos se somos dignas das negas que vamos levando. Não fui eu que fotografei Mariam. Tirámos uma fotografia juntas, depois de tirarmos a pinta e de nos estudarmos uma à outra. A imagem irmanou-nos. Mostra a nossa cara de cansaço às 8h30 da manhã. Encostadas a um armário de escritório, não somos mais troféus de caça, despidas, desapossadas, sem alma. A imagem não nos objectifica. Revela o alinhamento da nossa sensibilidade depois de uma pequena faísca, a aproximação súbita de duas energias prestes a separarem-se.

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Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em 1982. É autora de "Esse cabelo" (2015) e de "Ajudar a cair" (2017). Vive em Lisboa.

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