Skyline Pigeon

Noemi Jaffe

Arquivo do Instituto Cultural Israelita Brasileiro/Divulgação 

 

Eu gostava de assoprar no vidro da janela e ver se formar uma nuvenzinha de vapor, de manhã bem cedo. Depois ia para a escola, segurando a mão da minha mãe e brincando na garoa fina, com o capuz na cabeça. Antes da primeira semana de aula, passamos no Mappin e ela finalmente me comprou um conjunto de lápis de cor Tucano. Tirei com cuidado da caixa e coloquei no estojo de pele de vaca, vindo de Campos de Jordão, onde minha irmã tinha mandado gravar meu nome com pirógrafo. Depois que voltei do recreio, vi que tinham roubado tudo, o estojo e o lanche. Chorei no Fusca da Tia Richa, que veio buscar a gente, a Sandra, a Suely e eu. Gostava de ir até o Scholem, na Rua Três Rios, onde tinha um vendedor de beigale fresquinho e também o homem do quebra-queixo de duas cores. Lá perto também andava um velho corcunda, de chapéu amassado na cabeça, com um paletó gigante que ele abria de supetão. Lá dentro tinha de tudo e tudo à venda: clipes, canetas, pinças, pregos, tachinhas, bilhetes de loteria, borracha, apontador. Era um velho-lojinha, feio e assustador. Domingo passava o “atirabaitina”, palavra que até hoje provoca polêmica entre os moradores do Bom Retiro, uns achando que é “atirabaititina”. De jeito nenhum. É “atirabaitina”. Ele carregava um caixote pendurado nos ombros, com uma bandeja onde vendia o doce em forma de cone, recheado com doce de leite, embrulhado num papelzinho rosa. Ele gritava e todo o bairro escutava; era o aviso da tarde de domingo. Eu adorava, nessas tardes, o programa Boa Noite Cinderela, do Silvio Santos. A menina ganhava uma montanha de brinquedos, montanha mesmo. Na Rua Ribeiro de Lima tinha a Mercearia Europa, com uma vitrine de doces do lado de fora, onde se destacava o rocambole de chocolate com casca durinha e recheio de chocolate amargo. Nem os chocolates suíços e belgas de agora, nem os de três ingredientes, nenhum supera esse rocambole. Na casa da Sheila Grinberg, que morava na mesma Ribeiro de Lima, mais para baixo, ouvi Elton John pela primeira vez, num LP que tinha as letras das músicas no verso da capa e me apaixonei por Skyline Pigeon. Pedi o disco emprestado e ela, diferentemente do conto “Felicidade Clandestina”, em que a menina sonega indefinidamente o empréstimo do livro, me emprestou. Sonhava com o Elton, imitava o Elton, sabia as letras de cor. Meu primeiro namorado foi o Jorge, que depois se tornou paraquedista do exército israelense. Foi um começo de namoro escandaloso, porque eu sentei no colo dele no cinema e todo mundo ficou falando que eu era “dada”. O Alexandre disse que, na Rua da Graça, tinha um lugar em que as mulheres vendiam suas calcinhas por dinheiro. Ninguém entendeu nada. Aos sábados de manhã, minha mãe me levava às matinês do Tom e Jerry nos cinemas do centro: Paisandu, Pigalle, São João. Íamos de taxi, geralmente um DKW com um único banco na parte da frente. Depois do filme, íamos até a pastelaria e ela me comprava dois (dois, como eu amava que fossem dois) pastéis de queijo e um caldo de cana. Às vezes íamos no parque Trianon passear e ela me comprava um torrone Marta. Niniguém lembra desse torrone, mas tenho certeza de que ele existia e às vezes sinto o gosto dele na boca. Ia com meu pai na Rua Direita, passar pelas lojas de saias para quem ele fazia as vendas: Lojas Marisa e Lojas Hella. Era bom ver as saias que minha mãe tinha desenhado nas vitrines e eu sentia orgulho. Na rua ele comprava cocô de mentira, rato e barata de mentira e deixava no sofá da sala para assustar quem sentasse por ali. Uma vez ele comprou, no aniversário de casamento deles, um saco com um monte de carrinhos de plástico dentro. Deixou no lado da minha mãe na cama, com uma dedicatória: com muito carinho (ele não sabia falar “carrinho”).

O passado é um lugar longe e perto. Ele fica na esquina da Rua Correia dos Santos com meu fígado e quando eu passo por lá eu quase choro. Quase rio também.

 

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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

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