O apelo da colagem

Djaimilia Pereira de Almeida

Descobri na colagem uma forma de pensamento e questiono-me qual será o seu apelo. Talvez seja a possibilidade de recompor materiais condenados ao esquecimento e dar-lhes uma vida nova. Mas será que estou à procura de uma vida nova para os papéis, recortes, fotografias, tecidos ou para mim?

Colar, recortar, rasurar, sublinhar reabre uma segunda infância que eu julgava estar-me vedada. A colagem não é o início de uma coisa nova, mas um regresso. Às vezes é assim. Pressentimos estar perto de uma porta que não sabemos onde vai dar, para um lugar que não sabemos se já tínhamos habitado ou se é o futuro.

William James escreveu que há uma forma de estar doente que consiste em imaginar que podemos nascer duas vezes. Parece querer dizer que, para o bem e para o mal, temos apenas uma entrada na vida, agarrados a um único corpo e espírito. Mas será mesmo? Pelo caminho, pelos corredores, cheiramos portas que ainda não conseguimos ver (muito menos abrir) e que nos conduzem ao lugar onde as nossas recordações — e o presente — nos observam, para usar o título de Tomas Tranströmer.

O apelo da colagem é instaurar uma segunda infância que nada tem a ver com a primeira. Diante de mim, espalhados em cima da mesa, os meus olhos de três anos, a silhueta da minha mãe, o nariz de Arafat, o último tormento de Kadafi, observam-me, recortados de álbuns, folhetos e jornais roubados ao lixo do tempo, desintegrando uma antologia do presente.

Posso ressuscitá-los ou dar-lhes um novo fim — e com isso não renascer com eles, mas noutro lado, em que as leis, as combinações e as normas daqui não vigoram: um homem pode ter um pescoço de girafa; uma mulher pode vestir uma carapaça; uma cereja em calda pode ser uma ilha no meio do Atlântico. Em relação à vida como a conheço, a colagem é o reino divertido da anarquia. Ela instaura a desordem no que parecia a inalterabilidade do passado e sacode a nostalgia enquanto cria um código que baralha tudo.

Corto e recorto com um gozo infantil. À minha volta, o mundo muda e não muda nada. Mas no entretanto faço coisas pouco inocentes: gozo, vocifero, visto-me, perco-me: um dom mais árduo de merecer do que o de achar-me.

Barragem, Djaimilia Pereira de Almeida, 2017.