Em tradução (dublagem)

Caetano Galindo

 

O tradutor, o intérprete, é alguém que trabalha “a serviço” de uma voz original. Ou, no mínimo, de uma voz anterior à sua naquele trabalho. (Existe bastante complicação no uso do termo “original” na teoria da tradução.) É a partir de um conjunto de escolhas tomadas por aquele primeiro texto que se estabelece o conjunto de decisões que o tradutor tem que tomar.

Eu penso muito nisso quando vejo animações dubladas (e sempre prefiro ver em dublagem). Aquelas pessoas, tradutores, diretores de dublagem, dubladores, estão fazendo milagres ao fazer parecer natural o seu trabalho, quando toda a animação foi feita em geral a partir do som dos atores originais. 

Porque normalmente é assim, certo? Nas animações, digamos, de maior qualidade. 

Os atores gravam as falas, com liberdade para certa improvisação, usando o tempo que lhes parecer melhor para esta e aquela palavra, fazendo a careta que lhes parecer necessária… e em cima disso os animadores trabalham para encaixar não só os movimentos faciais, mas todo o desenvolvimento de cenas e personagens.

Assim, quando você vê o Bussunda dublando Shrek, ele está na verdade dublando não só o trabalho dos animadores, mas também tudo que veio de Mike Myers e acabou transparecendo no Ogro que a gente conhece. E, meu, isso deve ser uma saia justa encrencadíssima. Muuuuito mais complexa do que a que coube ao ator do original, que de certa forma tinha uma folha em branco para trabalhar.

Mas, do meu ponto de vista viciado, é claro também que essa situação pode ser deliciosa. Porque é assim que se diverte um intérprete: tendo que dançar com essas saias apertadas.

Por isso talvez certos tradutores (culpado!!) acabem uma hora querendo escrever literatura original. Você  talvez sinta que tem coisas que quer fazer “do seu jeito”. Você uma hora quer dançar pelado (metáfora, ok?).

Agora… e os dubladores?

A situação deles é bem pior que a minha. Porque escrever um livro, e até publicar, tem um custo irrisório (em termos de dinheiro, número de pessoas envolvidas, tempo, distribuição) se comparado à produção de uma animação profissa. E enquanto não se alinharem perfeitamente todos os astros que permitam que se ofereça a alguém simplesmente brilhante como Melissa Garcia esse passo para se tornar “criadora” de personagens (em “O irmão do Jorel”, por exemplo), a gente pode simplesmente nunca saber o quanto ela tinha a oferecer. Nunca ela ia ter diante de si aquela proverbial folha em branco.

E que perda….

Eu sempre penso isso quando vejo algo dublado por Guilherme Briggs. Ou, melhor ainda, quando vejo os vídeos épicos que ele publica no Instagram. Guardei o nome dele quando assisti “A nova onda do imperador” com a minha filha bem pequena, e de lá pra cá a gente segue o sujeito por toda parte.

Ele é um gênio.

Um artista de primeira.

E consegue demonstrar todo o seu trabalho dentro daquelas roupas bem apertadas…. Ah, se a gente tivesse toda uma indústria de animação e criação no Brasil…. O que poderia surgir da cabeça ensandecida e da voz camaleônica do grande Guilherme Briggs.

 

***

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

 

Neste post