Cultivar o jardim, quebrar o cálculo

Marília Garcia

 

Na semana passada, com minha filha de 2 anos, plantamos, no algodão, um grãozinho de feijão. Com um pouco de água, o grão virou uma arvorezinha de 15 cm, com caule, folhas e raízes, dando sinais de que o copo já não bastava para o seu tamanho. É preciso cultivar nosso jardim, penso no Cândido, de Voltaire que, depois de conhecer o mundo e suas agruras, propõe fazermos o que está ao nosso alcance – conselho sábio, sobretudo agora, em que não se pode sair desse canteiro dentro da selva de pedra.

Estava às voltas com este jardim no algodão, quando, em uma conversa com a poeta Alexandra Maia, ela me fez a seguinte pergunta: por que não menciono, em minha poesia, nenhuma flor (apesar de ter uma filha chamada Rosa)? A pergunta dela me fez pensar nas Flores do mal e na Rosa do povo, na flor como símbolo da poesia lírica, ou na flor associada à mulher e à poesia feminina. Cecília Meireles, Adélia Prado, a poesia do final do século XX. E em alguns livros recentes, O livro dos jardins, de Ana Martins Marques, A teoria do jardim, de Dora Ribeiro. Mas o primeiro poema que me ocorreu foi o “Lírio Branco”, de Laurie Anderson, flor aqui contaminada pela narrativa:

 

Em que filme do Fassbinder é que é? Um homem sem um braço
Entra numa florista e diz:
Qual é a flor que exprime
A passagem dos dias
Os dias que se sucedem sem fim
Puxando-nos
Para o futuro?
A infinita
Passagem dos dias
Puxando-nos infinitamente
Para o futuro.
E a florista diz:
O lírio branco.

(trad. João Lisboa. Anéis de fumo. Assírio & alvim, 1997)

 

No filme de Fassbinder (“Berlim Alexanderplatz”), a florista sugere uma flor com simbologia fúnebre (seria este o sentido buscado pelo homem?). Outro poema que me ocorreu também visita uma florista, de Jacques Prévert:

 

Na loja de flores

Um homem entra na loja de flores
e escolhe umas flores
a florista embrulha as flores
o homem enfia a mão ao bolso
para pegar o dinheiro
dinheiro para pagar as flores
mas de repente e ao mesmo tempo
ele põe
a mão ao coração
e cai

Enquanto cai
o dinheiro roda por terra
e depois as flores caem
ao mesmo tempo que o homem
ao mesmo tempo que o dinheiro
e a florista fica ali
vendo o dinheiro que roda
as flores que murcham
o homem que morre
tudo isso é muito triste é claro
e é preciso que ela faça alguma coisa
a florista
não sabe o que fazer
não sabe
por onde começar

Há tantas coisas por fazer
pelo homem que morre
pelas flores que murcham
e com o dinheiro
esse dinheiro que roda
que não para de correr.

(trad. Silviano Santiago, Poemas. Nova Fronteira, 1985).

 

 

Lembrei de muitas flores passeando pela poesia dos anos 90, e, lendo no conjunto, acho que buscam uma direção mais literal e textualista do que as flores femininas e metafóricas de outros tempos. Num livro de 97, Ângela de Campos diz: “de lírios não falo”, em uma recusa que não deixa de ser afirmativa, já que seu livro menciona flores (supõe-se, pela recusa, que seriam “anti-lírios”). Ou na poesia de Claudia Roquette-Pinto, em que há muitos poemas com plantas, flores, minerais, sobretudo nos livros Corola ou Saxífraga, nome de uma flor. Este título aliás, dialoga com um poema de William Carlos Williams no qual apareceu, pela primeira vez, o célebre preceito objetivista, “Ideias só nas coisas”.

 

Uma espécie de canção

Que a cobra fique à espera sob
suas ervas daninhas
e que a escrita se faça
de palavras, lentas e prontas, rápidas
no ataque, quietas na tocaia,
sem jamais dormir.

– pela metáfora reconciliar
as pessoas e as pedras.
Compor (Ideias
só nas coisas) Inventar!
Saxífraga é minha flor que fende
as rochas.

(Trad. José Paulo Paes. Poemas. Companhia das letras, 1987)

 

Idéias só nas coisas. Que a escrita se faça de palavras; que as flores sejam flores (e a rosa, rosa). Já a “saxífraga” – cuja etimologia latina significa, ao pé da letra, “quebra-pedra” por ser uma flor usada medicinalmente para quebrar pedra no rim (cálculo renal), dado que Williams devia saber pois era médico –, bom, talvez seja a saxífraga a flor que quebra as pedras, que pode quebrar o cálculo.

 

***

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

 

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