Convite para dançar

Marcílio França Castro

 

Essas gravuras começaram a emergir no fim da Idade Média, quando a Peste já se dissipara. Têm como tema a dança macabra, uma espécie de celebração da morte e da igualdade de todos diante dela. Esqueletos agitados, com alaúdes e tambores, arrastam as pessoas para o baile. Camponeses e nobres, monges, soldados, papas, gente de toda classe é convidada a participar da festa. Eis aí o memento mori, ou “lembre-se de que você é mortal”. Vistas daqui, do século 21, parecem ilustrar o fim de uma era.

Uma das gravuras é especialmente conhecida. Foi impressa em Lyon, na França, em 1499, e mostra o trabalho em uma oficina tipográfica. Impressores e tipógrafos estão a postos para executar suas tarefas, enquanto esqueletos se debruçam sobre eles, tentando capturá-los e puxá-los. É a época em que as casas de impressão se espalham pela Europa, e o livro manuscrito está morrendo, cedendo espaço aos volumes impressos. Ao ver essa gravura, sempre associo os esqueletos a copistas desesperados – ou eufóricos –, aqueles que perderam para sempre o emprego e vêm assombrar os novos, os que lhes tomaram o lugar na História; querem mostrar-lhes que a hora deles também chegará. A morte já está no princípio de tudo, inclusive dos livros.

Outro dia surgiu uma onda de vídeos na internet em que uma cena de desastre iminente (com inúmeras variações) é abruptamente cortada para outra, de um grupo de homens dançando alegremente enquanto carregam um caixão. Aqui não há esqueletos – os homens são saudáveis e muito bem vestidos. A montagem, bem-humorada e com uma com trilha sonora futurista, parece ter tido origem em uma cerimônia funerária em Gana. Guardadas as tantas diferenças, o vídeo dos coveiros – como vem sendo chamado – talvez cumpra uma função semelhante à das gravuras medievais. Um memento mori em forma de meme, a reboque da Peste que anda por aí.

Se fosse para imaginar uma versão contemporânea da dança macabra, tendo a achar que os esqueletos não serviriam mesmo como protagonistas – a própria concretude dos ossos é anacrônica. No lugar deles, só consigo supor fantasmas, fantasmas por todos os lados. A cada hora que se abre uma tela, de um celular, de um computador, eles já estão lá, instantâneos, etéreos. De seu mundo luminescente, que virtualmente nos duplica, esses espectros nos chamam a abandonar o corpo, saltar de vez.

 

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Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

 

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