Alma

Noemi Jaffe

(Still Life, 1860, de J. de Clercq/ Rijksmuseum Amsterdam)

 

Às vezes as pessoas me perguntam o que é "escrever com alma". Eu mesma também me faço essa pergunta frequentemente. Isso acontece porque também é frequente que eu leia textos que considero bem escritos, com todos os recursos bem empregados e com um domínio narrativo de grade destreza - e a palavra é mesmo essa - mas aos quais falta, o quê?, verdade, alma, necessidade, organicidade? Difícil nomear o que falta, mas, quando isso acontece, é perceptível que a destreza técnica se sobreponha a esse lastro.

Muitas vezes também me pergunto se essa sensação provém de um idealismo infantil, cuja premissa partiria de uma verdade que só pode se expressar em algum conteúdo mais profundo. Mas não é isso. Mesmo em textos que não se propõem a uma densidade reflexiva, é possível reconhecer essa unidimensionalidade, a ausência desse "quê".

Penso que, em arte, a verdade é umas das coisas mais questionáveis que existem. Se o conceito já é motivo de contradições e indefinições em filosofia, na ética e na política, na arte ele chega a beirar o absurdo, já que a arte, desde a Grécia Antiga, ao menos, sempre projetou sua própria verdade.

Mesmo assim, me arrisco a uma possibilidade de definição. Como a literatura se realiza a partir da integração entre palavra e pensamento, palavra e imagem, palavra e objeto, palavra e ideia, penso que é a coincidência entre o que se diz e como se diz - ideal de todo bom escritor - que perfaz o caminho para a chamada alma ou verdade literária. Se falo sobre a solidão de um personagem, é preciso que, de algum modo, minha linguagem seja, também ela, solitária. Se tematizo um jogo de futebol, também o ritmo, a elocução, a dinâmica da escrita deve ser "futebolística", tensa e polarizada. E se for desejo do autor que haja uma oposição entre o que se diz e como se diz - uma narrativa sobre a solidão escrita de forma eufórica, por exemplo - essa intenção deve estar clara no próprio texto, mesmo que, para isso, o leitor não precise se deter sobre ele. Ao contrário, o leitor percebe essa intencionalidade independentemente de um trabalho analítico ou interpretativo.

Um texto literário pode apresentar grande densidade narrativa, em termos temáticos, mas se ele for expresso em linguagem apenas superficial, sem camadas subjacentes, sem multiplicidade, ele se restringe ao conteúdo e fica quase acadêmico ou didático. Se, por outro lado, ele tiver grande trabalho técnico, o que chamei de destreza narrativa - muitas subordinações, rebuscamento lexical, piruetas linguísticas e descritivas - mas isso não estiver acompanhado de personagens, acontecimentos e cenas que sirvam de motivação para tanto, o texto será apenas circense.

Só é belo o que é necessariamente belo, disse uma vez Wassily Kandinsky, resumindo, com essa frase, toda a dificuldade que muita gente tem para compreender a arte moderna e contemporânea. Se a ideia unívoca de belo não faz mais sentido, como podemos defini-lo? Justamente pela necessidade. Se o leitor ou espectador encontra, no objeto artístico, uma relação de necessidade entre o que se apresenta e a forma como o objeto é apresentado, há beleza, mesmo que o resultado divirja de tudo o que já conheço como belo. Mesmo que seja feio, estranho, inquietante.

Não sei se podemos chamar isso de alma, como disse. Mas acredito que se possa chamar esse processo - tão difícil e, outras vezes, surpreendentemente fácil - de verdade literária.

 

***

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

Neste post