Tic-tac e blim blem

Noemi Jaffe

Foto: averess/ Getty Images

 

O tempo do relógio é sequencial; o tempo do sino vai e volta. O tempo do relógio é progressivo; o tempo do sino é pendular. O tempo do relógio representa a si mesmo; o tempo do sino representa celebrações. O relógio é portátil; o sino é impossível de portar. O tempo de um relógio é temporário; o tempo de um sino é permanente. O tic-tac de um relógio nunca muda; o blim blem de um sino nunca é o mesmo. Apesar do tic-tac do relógio nunca mudar, as horas do relógio mudam e passam; apesar do tempo do sino sempre mudar, as horas do sino são sempre as mesmas. O relógio marca tempos fixos; não se sabe que horas são no tempo marcado pelo sino. No relógio tudo é exato; com o sino tudo é aproximado. O relógio progride de acordo com a tecnologia, os costumes e a moda; o sino é sempre o mesmo, desde sempre e para sempre. O som de um relógio é staccato; o som de sino é legato. O relógio se ouve de perto; o sino se ouve de longe. O som do relógio não emite perguntas; quando o sino toca as pessoas se perguntam por quê e por quem. O relógio digital não faz tic-tac; o sino não pode ser digitalizado. Para o relógio funcionar não é preciso ninguém, pois ele é autônomo; para um sino funcionar é preciso alguém que o badale, pois ele não tem autonomia. O som do relógio não muda conforme os fenômenos naturais; o som do sino muda conforme o vento, a altura, o material, a chuva e a força de quem o badala. Os ponteiros, quando os há, marcam; o badalo soa, badala, dobra, toca, bate, dá e marca. O relógio é estático; o sino é dinâmico. O relógio está; o sino evoca. O relógio é a codificação do mistério; o sino é sua ampliação. O relógio é cronológico; o sino é cíclico. O relógio é uma lâmina; o sino é um volume. O relógio é uma máquina; o sino é mecânico. O relógio é uma representação; o sino é ele mesmo. O relógio é neutro; o sino é enviesado. O relógio é laico; o sino é religioso. O relógio marca o tempo da obrigação; o sino anuncia o tempo da necessidade. O relógio apressa; o sino demora. O relógio é implacável; o sino também, mas de outro jeito. O relógio é o princípio do real; o sino é o princípio do prazer. O relógio é tanático; o sino é erótico. O relógio é coerente; o sino é contraditório.

O relógio não cheira nem fede. O sino, ai de nós, cheira e fede também.

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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

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