Sirkis, o descarbonário

Claudio Angelo

Poema visual de Guilherme Gontijo Flores e Daniel Kondo homenageando Alfredo Sirkis para o projeto Coestelário

 

Katowice, Polônia, dezembro de 2018. Um grupo de ambientalistas brasileiros saídos de uma longa sessão da conferência do clima da ONU se espalha entre mesas de um dos poucos restaurantes abertos no centro da cidade tarde da noite. Lá pelas tantas ouço à minha esquerda alguém dar uma bronca no garçom, num polonês fluente mas com um estranho sotaque carioca. A cena era hilária, não menos pela cara de absoluta surpresa do garçom e dos comensais. Alfredo Sirkis fala polonês desde quando? Desde que nasceu, óbvio. “Meus pais são poloneses”, explicou na saída.

Era a segunda vez que os dotes linguísticos de Sirkis me provocavam risadas. Quando o conheci, em 2009, o então deputado federal fazia as vezes de tradutor de Marina Silva na malfadada conferência do clima de Copenhague. Um tradutor mais para homem-legenda: todas as vezes que a pré-candidata do PV à Presidência discursava fazendo referências veladas à então nêmese do movimento verde, Sirkis fazia questão de emendar: “She’s talking about minister Dilma”.

O poliglotismo do carioca foi determinante em sua vida em outros momentos. Cinquenta anos atrás, Sirkis era conhecido como Felipe e andava de 38 na cintura, escondendo-se da polícia em diversos “aparelhos” no Rio. O pós-adolescente de 19 anos, recém-formado num colégio de elite, havia adiado o sonho dos pais de entrar na universidade para militar na luta armada contra a ditadura.

Juntou-se à Vanguarda Popular Revolucionária, de Carlos Lamarca, onde foi destacado como intérprete de inglês e francês em duas ações ousadas: os sequestros dos embaixadores da Alemanha, Ehenfried von Holleben, em 1970, e da Suíça, Giovanni Bucher, no ano seguinte. A primeira ação resultou na libertação de 40 presos políticos, entre eles seu amigo de escola Carlos Minc. A segunda, da qual Lamarca participou diretamente, libertou mais 70 militantes da tortura.

Sirkis relatou a experiência dos seus anos de chumbo num livro que se tornaria um clássico da literatura sobre a ditadura, Os carbonários, lançado em 1980, que ganhou o Prêmio Jabuti em 81. Esgotada nas livrarias e sem novas edições impressas (Companhia das Letras, #ficaadica), a obra ganhou uma versão em audiobook pela Ubook por ocasião do lançamento do último livro do autor, Descarbonário, que saiu em junho pela mesma editora.

São livros que merecem ser lidos em sequência. Primeiro, por contarem a transformação de Sirkis de militante de esquerda em ativista ambiental. Descarbonário trata das peripécias do autor na última década e meia para ajudar a combater a crise climática e a descarbonizar (daí o título) a economia. Em vez de falar das tecnicalidades da ciência do clima e do horror de seus impactos (“seria chato pra cacete”, me contou numa conversa – eu fingi que não era comigo), o velho repórter resolveu ficar na sua zona de conforto e contar anedotas e histórias pessoais de militância climática. Decisão acertada: o leitor se diverte e acaba absorvendo pelas beiradas o conhecimento essencial sobre o assunto, inclusive os meandros exasperantes das negociações do Acordo de Paris.

No bolo, conta como fundou o Partido Verde no Brasil após voltar do exílio, juntamente com mais dois ex-guerrilheiros cariocas – Minc, que viria a ser ministro do Meio Ambiente, e o também jornalista Fernando Gabeira. Relata sua brancaleônica canditatura à Presidência em 1998 e alguns causos de Congresso, como embates eventuais com um colega deputado, um polemista obscuro chamado Jair Bolsonaro.

Certa vez, numa comissão da Câmara, para chamar atenção, Bolsonaro acusou Sirkis de terrorismo. “Vossa Excelência sequestrou o embaixador americano e o manteve em cárcere privado por 41 dias!” “Isso é mentira, deputado. O americano foi o Gabeira. Esse foi o suíço!”, retrucou Sirkis, arrancado risadas na sala.

Outra razão para ler os dois livros é que eles ganharam uma atualidade súbita no Brasil de 2020. Para mim, que nunca havia lido Os carbonários, os paralelos entre a atmosfera no Brasil em 1968, descrita no livro, e em 2018, quando Bolsonaro foi eleito, são arrepiantes. Então, como agora, há um subtexto de apoio maciço das elites econômicas nacionais ao governo autoritário diante de uma promessa de desregulamentação ampla, geral e irrestrita (aposto que se alguém buscar nos jornais da época, verá empresários defendendo o “milagre” de Delfim Netto com frases idênticas às que se usa hoje para louvar Paulo Guedes).

Então, como agora, a chegada ao poder de um grupo militar autoritário parece ter legitimado um elemento de sadismo na sociedade brasileira. O episódio, relatado em Os carbonários, do guardinha que surpreende dois meninos brancos na praia e começa a lhes confessar torturas e assassinatos cometidos contra pobres a troco de nada, soará familiar para muitos cidadãos do Rio e de São Paulo de hoje em dia.

Descarbonário acrescenta um elemento ao mal-estar da civilização brasileira que não estava presente na época da ditadura: a crise ambiental. Em boa parte, no que toca ao desmatamento da Amazônia, essa crise foi gerada pela ditadura, com seus projetos de “integração” e grandes obras como a Transamazônica. Ela se repete hoje com um governo preso à mentalidade dos anos 1970, mas com uma diferença fundamental: o mundo mudou. A necessidade de cumprir o Acordo de Paris e evitar os piores efeitos da mudança do clima passa pela eliminação do desmatamento – que, como também ficou demonstrado no começo deste século, está totalmente dissociado do crescimento econômico. Diferentemente dos anos de chumbo, hoje nós conseguimos medir em tempo real o impacto de políticas públicas e discursos presidenciais sobre a floresta. O Brasil de 2020, que deveria estar aproveitando seus ativos para dar o salto da economia verde, voltou dez casas no tabuleiro com a eleição de Bolsonaro e agora tem que discutir se a mudança climática é real ou não.

Outro motivo para ler Os carbonários e Descarbonário é simplesmente o deleite diante do texto de Sirkis. O velho repórter tinha uma escrita muito peculiar, ao mesmo tempo erudita e informal, norma culta entremeada de palavrões e neologismos. Escrevia como falava, num carioquês gostoso de ouvir. Conseguia transformar em ferramenta até mesmo o adjetivo, essa categoria gramatical maldita que os jornalistas somos treinados a evitar.

Sirkis morreu no dia 10 de julho, aos 69 anos, num acidente de trânsito horrendo e inexplicável na Baixada Fluminense. Estava a caminho do sítio da família em Vassouras – o mesmo lugar onde aprendera a usar armas na adolescência, antes de adotar o codinome Felipe. Havia acabado de fazer lançamentos virtuais de Descarbonário no Rio, em São Paulo e em Brasília. Estava feliz.

Sua voz fará falta no momento em que investidores ameaçam tirar dinheiro do Brasil devido às políticas de desproteção da Amazônia e de negacionismo climático do governo Bolsonaro. No momento em que a recuperação da economia pós-pandemia é ameaçada por gente obtusa tomando decisões econômicas como se estivesse na ditadura.

Para além de arranca-rabos pontuais na Câmara, Sirkis foi a antítese perfeita de Bolsonaro. Lutou ao lado de Lamarca na juventude, enquanto o presidente, em sua juventude, se ofereceu para ajudar a repressão a localizar Lamarca no Vale do Ribeira (numa ironia triste, o hoje ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro mandou tirar um busto de Lamarca de um parque no Ribeira e virou réu na Justiça pelo ato de vandalismo). Mesmo na luta armada, opôs-se a execuções e justiçamentos pela guerrilha, enquanto Bolsonaro defendeu tortura e fuzilamentos. Buscou o tempo todo a despolarização e o diálogo, enquanto o presidente triunfa na polarização e no dogma. Para minha surpresa, era um opositor da revisão da Lei da Anistia e nunca buscou romantizar a guerrilha (“é um passado que não me envergonha, mas tampouco me enaltece”). Defendeu até mesmo a instituição que tentou matá-lo e que matou vários de seus companheiros, o Exército, argumentando em favor do papel institucional das Forças Armadas na manutenção da democracia.

Como Minc, Gabeira, Liszt Vieira e outros ex-militantes contra a ditadura que abraçaram a causa ambiental, Sirkis nunca deixou de acreditar na transformação da sociedade. Em uma passagem de Os carbonários, lembra como o idealismo juvenil foi alvo de ceticismo do embaixador suíço, com quem mantinha conversas no cárcere. Ao descobrir a idade de seu captor, Bucher passou-lhe a ladainha de sempre: “Será que vale a pena entrar nessa com 20 anos? Você está realmente convencido de que vai mudar as coisas?”, questionou. “Eu estava.”

 

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Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

 

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