Saga das oito mãos, parte III: um término de escrita

Luisa Geisler

Foto por Tadeu Vilani

 

Ao querido leitor, se o título “parte III” não denuncia, recomendo que se leia a parte a primeira e a segunda parte desta série.

Como funciona um projeto de escrita coletiva entre quatro autores? Seguem os três aspectos essenciais.

 

1. Com e-mails. Muitos e-mails.

Por e-mail, falamos de nossos personagens, organizamos quem ficaria com quem. Murilo, meu pequeno garoto-soldado com seu bicho de estimação a definir, já havia surgido na conversa com Marcelo. Eu já havia avisado que estavam todos proibidos de ter uma criança.

Usar uma criança me parecia genial. Há algo de bonito na narrativa em primeira pessoa de uma criança: linguagem, ponto de vista interessante, uma evolução de alguém que precisa ir da vida protegida por soldados em uma vila militar a virar o próprio soldado que protege até os maiores que ele. Uma vantagem era que eu poderia me enganar em detalhes e culpar o ponto de vista. A primeira pessoa nunca é confiável.

Na troca de e-mails “Re: projeto secreto: zumbis”, Samir comenta: “Uma coisa que me incomoda em histórias de zumbis é que são essencialmente cadáveres que nunca se decompõem (o que encerraria um apocalipse zumbi depois de alguns meses por bem ou por mal). Nesse sentido, tem soluções boas em Extermínio (vírus da raiva), e The Last of Us (fungo que existe de verdade), o que na prática, assim como Eu sou a lenda, faz com que não sejam exatamente zumbis.”

Nesta mesma troca, Marcelo aponta: “Adorei a ideia de não usarmos o termo ‘zumbi’. ‘Corpo-seco’ é sensacional. Se o ponto-zero ocorrer em algum local rural, faz todo o sentido as pessoas se referirem aos mortos-vivos como corpos-secos. Aliás, ótima lembrança, a do ponto zero! Não tinha pensado nisso ainda, é crucial para a história. Poderia ser na soja, sei lá. O manuseio direto dos herbicidas.”

Eu digo: “Acho uma decisão importante é se seria numa primeira ou terceira pessoa, ou se unificaríamos isso, ou cada um vai pro seu lado. Pessoalmente, acho que variedade pode ser legal, criando uma vibe meio World War Z (o livro, nunca o filme), de um conjunto de vozes e pontos de vista. Mas acho que podemos falar isso no Hangout.”

Natalia acrescenta: “Ah, sobre a ideia de corpo-seco: gosto muito. Inclusive, podemos trabalhar isso em metáforas muito boas para o cansaço, a falta de esperança na humanidade,  as tecnologias que nos consomem… Dá bastante pano pra manga".

 

2. Com uma editora.

Luara França, nós te amamos. Luara, este projeto não existiria sem ti. O Marcelo queria que o projeto fosse quatro novelas isoladas. Quem meteu a carga total e disse que seria um único romance interligado foi a Luara.

Quem escolheu a fatídica (e famosa e excelente) primeira página, primeiros parágrafos (escritos por Samir) foi a Luara. Quem me fez deletar um capítulo (com bons argumentos) foi a Luara. Quem conseguiu dar liga nessa história inteira foi a Luara. Quem cuidou do ritmo com tanto afeto foi ela. Este projeto existiria sem a Luara? É possível. Mas seria uma merda? Sim. Foi por causa da Luara França, que nos fez ler Eu sou a lenda de Richard Matheson, batizamos o vírus de corpo-secagem de França-Matheson.

 

3. Com compartilhamento.

Com Google Docs, arquivos compartilhados, marcações de edição. E prazos. Muitos prazos.

Criei um grupo de WhatsApp em 20/08/2018. Trocamos dúvidas mais imediatas, referências importantes. Vi as dúvidas surgindo às três da manhã: “a gente definiu se o presidente é homem ou mulher?”. Ficamos tristes com eleições, nomeamos Natalia a dona dos melhores stickers, comparamos Marcelo Ferroni a Dwayne The Rock Johnson, ficamos tristes pela morte do Zé do Caixão, trocamos imagens icônicas que nunca usaríamos. Em 15/01/2019, Samir comunicou ao grupo que me encontrou para um café, e neste dia, decidiu usar uma referência ao filme Zumbilândia com o Antônio Xerxenesky. Samir e eu discutimos se o chocolate que Mateus levaria para Murilo (seu irmão) seria um Kit Kat ou Bis. Nem só de e-mails sérios e ideias bem pensadas de cabo a rabo se escreve um livro.

O compartilhamento também existiu no ato de mostrar um texto vindo à tona ao vivo em frente de quatro pessoas (Marcelo, Natalia e Samir) que admiro. Os meus “em baixo” que deveriam ser “embaixo”. Meus “apontar com a ponta do dedo” (uma redundância pavorosa que só sumiu na leitura coletiva).

Aprendi a ver o texto de meus colegas surgindo na minha frente. Aprendi a pensar como o que eu fazia se encaixava com eles. Eles tiveram que lidar comigo definindo o nome de meus personagens no último mês, ao longo de todo o livro, meu personagem tinha diálogos como:

— Como é seu nome?

— XXXXX.

— XXXXX, você está sozinho?

— Sim.

“XXXXX” seria trocado por “Murilo” no texto de todo mundo no futuro.

 

Nós apenas nos encontramos em pessoa os cinco na sessão de fotos para a divulgação do livro. Fomos nos encontrando em algumas ocasiões, Samir, Natalia e eu nos víamos com mais frequência, por sermos gaúchos. Estávamos ansiosos para um lançamento em pessoa por ser mais uma desculpa para nos vermos de novo.

Quando perguntam como foi, digo que foi surpreendentemente fácil. Nestes posts, demorei tanto narrando como montamos o time, porque este time foi a chave. Este projeto poderia ter implodido mil vezes. Imagine um autor com ego maior, um autor mais sensível com alterações, um autor que não visse o livro como um projeto conjunto. Corpos secos pra mim é uma ode à importância da coletividade e do trabalho em equipe em prol de um total.

Espero ter respondido todas as perguntas ao longo deste post. Não entrarei no processo de lançamento concomitante com o coronavírus, porque os prazos eram anteriores a tudo isso. Desde ano passado, estávamos falando de “abril de 2020”. Esse desafio foi maior que eu, por ter sido o primeiro lançamento da Companhia das Letras durante a pandemia. E agradeço imensamente todos que participaram disso.

Ao longo do processo de escrita de Corpos secos, nós nos lemos muito. Nós nos ajudamos a escrever coisas (sou insuportável com a linguagem de Murilo e mexi em todos os diálogos em que ele aparecia). Nós problematizamos até o que não poderia ser problematizado. Nunca subestime a neurose de quatro autores achando problemas juntos. Mas nunca subestime a capacidade de produzir de quatro autores buscando juntos um resultado excelente.

 

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Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges PolessoMarcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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