República duplipensante do Brasil

Claudio Angelo

Foto: Adaptação para o cinema de "1984", de George Orwell, dirigida por Michael Anderson e lançada em 1956. Créditos: Reprodução / Divulgação 

Entre as minhas diversas falhas de caráter, uma particularmente embaraçosa era nunca ter lido 1984. Quiseram o destino e esta editora linda que me paga esta coluna com livros (pense no proverbial pinto no lixo) que eu tenha finalmente corrigido essa deficiência. E logo em 2019, ano em que a obra-prima de George Orwell completa 70 anos – e o Brasil entra num período orwelliano de sua história.                     

Para todas as outras quatro pessoas que ainda não leram, o livro trata das aventuras e desventuras de Winston, um funcionário público de um superpaís chamado Oceânia, que engloba as Américas (inclusive o Brasil) e o Reino Unido. Oceânia é um lugar distópico – de fato, 1984 é a distopia original da literatura. Um Estado totalitário cujos cidadãos são vigiados 24 horas por dia, vivem sob escassez permanente de comida e bens de consumo e onde todo o desenvolvimento científico e tecnológico é canalizado para dois objetivos: fazer guerra com dois outros países, a Eurásia e a Lestásia, e flagrar em qualquer pessoa qualquer alteração comportamental que possa trair “inortodoxia”, ou seja, questionamentos ao Partido governante e sua figura máxima, o Grande Irmão. Um ramo especial do governo, a Polícia das Ideias, cuida da detecção do chamado pensamento-crime. A punição é a morte.

Ler 1984 durante o governo Bolsonaro é um privilégio dúbio, já que o leitor pode ver alguns dos elementos da distopia em ação em tempo real no noticiário. São paralelos assustadores. Atenção, olavistas e minions em geral: não estou dizendo que o país está se tornando uma república totalitária aos moldes da Coreia do Norte. Mas aqui, como em Oceânia, a sociedade parece ter feito uma opção por abrir mão da democracia e da liberdade em troca de segurança.

O principal desses paralelos é o chamado “duplipensamento”, um modo mental particular da classe governante de Oceânia. Orwell o descreve da seguinte forma: “Saber e não saber, estar consciente de mostrar-se cem por cento confiável ao contar mentiras construídas laboriosamente, defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas; recorrer à lógica para questionar a lógica, repudiar a moralidade dizendo-se um moralista, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era guardião da democracia”.

Qualquer pessoa que tenha lido jornais ou assistido à TV nos últimos sete meses será capaz de apontar várias cenas explícitas de duplipensamento do presidente e de seus auxiliares: Bolsonaro defendendo a ditadura e depois jurando cumprir a Constituição de 88; Bolsonaro negando a existência de um decreto já assinado por ele e publicado no Diário Oficial; Bolsonaro admitindo que usou auxílio-moradia para “comer gente” e ameaçando fechar a Ancine por causa da Bruna Surfistinha, “em respeito às famílias”; Abraham Weintraub falando em investimentos em pesquisa ao mesmo tempo em que chama a liberdade acadêmica de “balbúrdia”; Abraham Weintraub ensinando a uma plateia numa tal “cúpula conservadora” que, ao argumentar com “comunistas”, é preciso xingar e “não pode ter premissas racionais”; Sergio Moro juiz perseguindo políticos corruptos e Sergio Moro ministro aliviando para Flávio Bolsonaro; Ricardo Salles dizendo que não nega o aquecimento global, mas que ele pode ser causado pela “dinâmica geológica” da Terra; Ricardo Salles dizendo que o Brasil tem “desmatamento zero” quando o país perdeu quase uma Jamaica em florestas só na Amazônia e só em 2018; Ricardo Salles afirmando a senadores (esta é uma das minhas favoritas) que a culpa da liberação recorde de agrotóxicos no Brasil é do processo lento de liberação de agrotóxicos. Salles deve ter mestrado em duplipensamento em Yale.

Se estivesse vivo hoje – supondo que não tivesse infartado de desgosto com o Brexit –, Orwell poderia dizer que sua criação do duplipensamento antecipara em quase sete décadas o “pós-verdade”. A mentira e a contradição deliberadas, nas mãos da nova direita, deixam de ser uma ferramenta para o exercício do poder para se tornarem o próprio modo de governar. Conquanto ressoem com as crenças de seus apoiadores, o fato de as alegações do governo não encontrarem base alguma no mundo real deixa de ter qualquer importância. Bolsonaro captou bem esse Zeitgeist em julho, quando chamou de mentirosos os dados de desmatamento que o Inpe publica há 30 anos: “No nosso sentimento, isso não condiz com a realidade”.

Em 1984, a estrutura de suporte do duplipensamento era dada pelo Ministério da Verdade, encarregado da manipulação total da opinião pública (as torturas e o extermínio de opositores aconteciam no Ministério do Amor e a guerra era gerenciada pelo Ministério da Paz). Desde o cinema até o jornalismo, passando pelas estatísticas oficiais e até a gramática da Novafala, a língua do Partido (a “única língua no mundo cujo vocabulário encolhe a cada ano” e cujo objetivo é “estreitar o âmbito do pensamento”), tudo era manipulado pelo Ministério da Verdade. Até mesmo o passado: o departamento onde Winston trabalhava, por exemplo, era encarregado de reescrever as edições antigas dos jornais e rever documentos já publicados de modo que o Grande Irmão jamais errasse uma previsão num discurso e de que não restasse nenhuma prova documental de que opositores assassinados do Partido (“despessoas”, em Novafala) houvessem sequer existido. Ao confiscar a memória da sociedade e mudar constantemente o passado, o Partido garantia a totalidade e a eternidade de sua permanência no poder.

Bolsonaro ainda não criou seu Ministério da Verdade, mas não é preciso ir muito longe para adivinhar nele esse desejo. Seu chanceler vive tentando mudar o passado, ao negar, por exemplo, o caráter de extrema-direita do nazismo e a ocorrência de uma ditadura militar no Brasil. O presidente trata a imprensa e os jornalistas como inimigos. Já investiu contra o Enem e a Ancine por publicar inortodoxias (questões de provas e filmes “com viés ideológico”, na Novafala bolsonarista). E cultiva o hábito de desqualificar as instituições do próprio governo que tragam dados contrários a seu “sentimento”: criticou o IBGE pelas estatísticas de desemprego e, agora, espezinha o Inpe pelos dados de desmatamento – ameaçando uma série histórica de 31 anos que é a memória da relação do país com a Amazônia. O mantra “era pior com o PT” não deixa de ser outra tentativa de alterar o passado, ou borrar seus contornos. 

Orwell apresenta uma visão extrema de um sistema antidemocrático, mas teve inspirações óbvias no mundo real. O próprio livro menciona os totalitarismos nazista e stalinista; dos expurgos deste último certamente saiu a ideia das “despessoas”, inimigos do partido arrancados da memória (literalmente apagados das fotografias) após sua execução. Não viveu para ver também o contrário, a vida imitando sua arte. A ditadura comunista da Coreia do Norte, estabelecida quatro anos após a publicação de 1984, emula métodos do Grande Irmão, como vigiar constantemente seus cidadãos e atribuir ao seu líder invenções como o avião e o rádio. É possível que, mesmo em plena euforia do pós-guerra, o escritor britânico tenha imaginado um mundo tão ameaçado pelas armas nucleares que pudesse levar a humanidade a abrir mão das liberdades democráticas – ou se deixar conquistar por tiranos para sobreviver.

De qualquer maneira, o livro é um alerta: os horrores do totalitarismo já ocorreram uma vez e não há nenhuma lei da física que os impeça de ocorrer de novo, num mundo em que a tecnologia facilite o trabalho dos ditadores. No Brasil de 2019, em que tantos elementos do manual orwelliano se desenrolam sem uma resposta veemente da sociedade, fica difícil discordar.

P.S. Este texto foi escrito antes da atrocidade cometida por Bolsonaro contra a memória de Fernando Santa Cruz e das demais vítimas da ditadura, mais um caso de mentira deliberada do chefe do Executivo.

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Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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