Quadrinhos para uso das novas gerações

Érico Assis

Crédito: Estúdio Pianofuzz

 

O podcast Confins do Universo fez recentemente uma sabatina com o editor de quadrinhos Rogério de Campos. Num trecho das duas horas de conversa, Campos encaixa que fez parte de uma organização trotskista quando era mais novo e abre parênteses: “Trótski! Recomendo que os ouvintes vão aí dar uma lida no Trótski”. Os podcasters entram na brincadeira, dizem que é “jabá” e pedem som de máquina registradora. TLINK!

Anos atrás: eu, mediador numa Bienal de Quadrinhos de Curitiba, desafiado a coordenar a mesa com cinco editores falastrões, incluindo Rogério de Campos. Pedi para alguém da plateia desenhar um Deadpool. Combinei com os mediados: toda vez que eu levantasse o desenho do Deadpool, era sinal de que você estava falando demais e devia encerrar sua parte. A plateia e a mesa entenderam. Menos Rogério de Campos, que me encarou pra perguntar:

– O que é Deadpool?

Defendendo-o, foi antes dos filmes. E melhor viver sem ter lido Deadpool. Mas também considero que ele se fez de desentendido.

Conto isso para introduzir, quem sabe justificar, o livro mais recente de Campos, HQ: Uma pequena história dos quadrinhos para uso das novas gerações (Edições Sesc). Já está dito que é um livreto e que é mais uma história dos quadrinhos. O resto do título é subversão.

O livro até que começa comportado. O primeiro capítulo, “Phad: como a Índia inventou as histórias em quadrinhos (e também o cinema)”, fala dos sacerdotes do século 5 a.C. que vagavam por vilas indianas com rolos de tecido que serviam literalmente de pano de fundo para contação de histórias. Passa aos chineses, aos japoneses, vai até os Progress de William Hogarth. O segundo capítulo vai de Töpffer a Ally Sloper a Wilhelm Busch a Os Sobrinhos do Capitão.

É material que se encontra em outros livros sobre os primórdios da HQ. O próprio Campos organizou e escreveu um desses, Imageria, do qual já tratei aqui. Neste Pequena história, tem-se uma versão bem resumida.

A partir do terceiro capítulo, começa a subversão. Da influência alemã no quadrinho norte-americano do início do século 20, se passa a humor anárquico, histórias de bichinhos, máfia, imperialismo, Operação Mockingbird e editores brasileiros que foram torturados no DOPS. No meio do capítulo: “O Super-Homem inaugurou o gênero super-heróis, que está vivo até hoje como a manifestação cultural mais evidente da persistência do fascismo”.

O capítulo “Fumetti” é um capítulo sobre Valentina (e seu caso com Trótski) e pouco mais que isso. O capítulo “Mangá” começa na França de 68 e entra numa tangente sobre Robert Crumb que desemboca em seção autobiográfica, onde Campos fala de como seu envolvimento no grupo trotskista levou aos primeiros trabalhos como editor de HQ. Há alguns japoneses perdidos em “Mangá”. E o capítulo derradeiro, “France”, fala de Marvel, DC, Art Spiegelman, Love & Rockets… e mangás.

Entre outras tangentes, há coisas de que eu nunca ouvi falar – que Art Spiegelman tinha planos de publicar Maus originalmente numa revista francesa, por exemplo – e a história do hippie japonês Atoss Takemoto, que trouxe o mangá pra Europa, largou para estudar literatura árabe na Tunísia e foi montar um grupo de flamenco em Paris. (Takemoto, a propósito, faleceu no último 2 de junho.)

Não é como se o livro não tivesse passado por edição, nem que o autor não saiba o que está fazendo. Nas primeiras páginas, ele avisa que o opúsculo devia ter um título de 188 palavras, que começa por Uma pequena, ligeira, subjetiva, incompleta história dos quadrinhos… e termina em a história não deve ser encarada como fardo, mas como fonte de inspiração para novas revoluções.

É o livro mais divertido que já se escreveu sobre história das histórias em quadrinhos.

Acompanhei a trajetória de Rogério de Campos na edição. Sou um tanto quanto cria desta trajetória. Não peguei a Animal e a General, mas fui leitor da Herói - na qual ele teve uma participação menor, mas esteve envolvido. A editora dele e dos colegas, a Conrad, vendeu somas astronômicas e, depois, de Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco, onde eu conheci mangá. O fato de que Dragon Ball financiou a Coleção Baderna, uma série de livros sobre contracultura e ativismo político, é um marco no mercado editorial brasileiro. Foi como ovelhinha fiel a toda linha da Editora Conrad que acabei fazendo um mestrado sobre ativismo político. Depois veio a Veneta, sua editora atual, e a venetice que sempre me surpreende no catálogo: os nacionais que viraram referência (Tungstênio, Angola Janga), Love & Rockets, Manara, Moebius, Alan Moore, Crumb, Leminski, Tezuka, quadrinho latino-americano que ninguém arrisca e mais Coleção Baderna.

Parece uma carreira fundada no détournement, aquele método situacionista (aprendi com a Baderna) de fisgar a pessoa com o pop para pregar revolução. HQ: Uma pequena história dos quadrinhos para uso das novas gerações captura no título. Além de referência ao Arte de viver para as novas gerações de Raoul Vaneigem (Coleção Baderna, 2002), me vem a imagem de Rogério de Campos convidando criancinhas para formar uma roda porque o tio vai contar o que é gibi.

Aí ele abre uma revista com capa da Turma da Mônica e, dentro, tem o Crumb montado na Aline. Os dois citam Trótski.

 

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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

 

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