Paraquedas

Noemi Jaffe

 

Como filha de sobreviventes da segunda guerra e já tendo escrito um livro sobre as experiências vividas por minha mãe num campo de concentração, uma de minhas maiores ocupações e preocupações é a potência e a impotência das palavras para dizer o indizível. Primo Levi nos ensina que a guerra está na ordem das coisas que não se podem dizer mas, ao mesmo tempo, na ordem das coisas que precisam ser ditas - por quem passou por ela e para quem não passou por ela - e que esse é o paradoxo do sobrevivente. Mas diria que o é também do não sobrevivente, mas dos filhos dos sobreviventes e de todos aqueles que se interessam pelas experiências trágicas e traumáticas em profundidade.

Acredito que, neste momento, no mundo, mas mais especialmente no Brasil, estamos passando novamente por essa experiência. Eu, ao menos, perdi as palavras capazes de designar, contemplar, significar o ódio e a repulsa que venho sentindo, além do medo e da tristeza.

Mas sinto que preciso sempre dizer. Por quê? Para compreender, desabafar e acho que principalmente para dar forma aos sentimentos, a fim de que eles não tomem conta de mim.

Como e o que dizer, então? Os palavrões se esgotaram e as explicações teóricas , na maioria, cansam e parecem patinar em tautologias. Tento esquecer, não consigo, estou viciada em odiar. Tenho escrito um diário de quarentena, que publico nas redes sociais e isso esvazia um pouco a carga, que retorna rápido, enchendo novamente os tubos nervosos, já bastante corroídos pela acidez.

Vontade de inverter a gramática e as letras: losnobsaro pior mundo do governante é mortos ver que todos quer. De focalizar miudamente os detalhes do corpo, dos gestos e das palavras até que o absurdo dessa existência salte aos sentidos: o papo duplo, o rosto grudado no pescoço, a incapacidade do sorriso que se basta num esticamento lateral dos lábios, a brilhantina empastelada numa semi costeleta, uma das sobrancelhas arqueadas como a de uma dessas personagens más de contos de fada, a risada inacreditavelmente rá-rá-rá. De construir e desconstruir notícias, palavras soltas, objetos, fazer montagens e colagens desconexas, por onde palavras escapolem moles como gosmas, espremidas de potes de mostarda vazios. De, ao contrário, organizar tudo em fichas, fichários, listas, transformar o pensamento em catálogos burocráticos de palavras extensamente ordenadas, em estado de relatório científico e criminal; definir o ódio em detalhes, encontrar seus oitenta e nove sinônimos, especificar cada um, discernir entre seus graus e aplicações.

Para que serve tudo isso?

Em termos práticos, para pouca coisa ou quase nada. Mas, como para Primo Levi, é impossível não dizer. O horror precisa passar por processos transformadores para que o corpo possa suportá-lo; ele precisa virar palavra. Quando as mais convencionais nos faltam para comportá-lo, recorro às mais estranhas, às inesperadas, às subversivas e isso, temporariamente, filtra seus gases tóxicos. Como diz lindamente Ailton Krenak em seu "Ideias para adiar o fim do mundo", estamos em queda, sim. Mas paraquedas caem lenta e suavemente e ele recomenda criarmos paraquedas coloridos. Que não evitam a queda, mas a tornam irreconhecivelmente transgressiva.

É preciso transgredir para olhar na retina do ódio e para tentar driblá-lo. Até que a fonte do mal, também ela, caia. Sem paraquedas.

 

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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

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