No coração das trevas

Claudio Angelo

 

Não existe decisão boa tomada em mesa de bar. Pode atestá-lo qualquer pessoa que já tenha acordado de ressaca ao lado de alguém e se perguntado “o que foi que eu fiz??”. Ou meu pai, que comprou no boteco (e, salvo engano, pagou à vista) uma casa de veraneio micada, que ele vendeu sem nunca ter usado. Ou eu mesmo, que há algumas semanas, num surto de empolgação etílica, resolvi entrar num grupo de WhatsApp bolsonarista “para ver como eles pensam”.

A intenção era nobre e, achava eu, continha até alguma malícia carluxiana. Minha ideia era ficar lá uns dias pagando de extremista de direita e, aos poucos, infiltrar mensagens sobre meio ambiente, direitos humanos e a esfericidade comprovada da Terra até o dia que eu mesmo recebesse essas mensagens de alguma tia no grupo da família – sinal inequívoco de que o conteúdo havia viralizado nas bolhas certas.

Claro que falhei fragorosamente. No segundo dia eu já estava trocando ofensas com alguma pessoa cujo nome no zap era uma série de emojis de bandeiras do Brasil e de Israel. Do terceiro dia em diante eu já acordava com crise de ansiedade antes de abrir as mais de cem mensagens que se acumulavam no grupo. No sexto dia eu já estava chamando um e outro de burro. No nono fui removido, após clamores na lista por um Pogrom virtual que detectasse e eliminasse “infiltrados comunistas”. Ganhei uns dois anos de expectativa de vida após a expulsão.

Todos os dias desse período eu me sentia como um adolescente que flagra os pais fazendo sexo: é algo que você sabe que acontece, mas que seria melhor não testemunhar nunca. Eu sabia que o lado mais escuro do comportamento de massas aflorava ali. Que um misto de fascismo, olavismo e fanatismo cristão, combinado com pensamento de manada, má-fé e, em alguns casos, limitação cognitiva provavelmente dominava aquele coletivo de umas 240 pessoas. Que era gente disposta a acreditar em virtualmente qualquer coisa – da mamadeira de piroca à inocência de Flávio Bolsonaro. Eu sabia, e essa era em grande parte a razão de eu estar ali, que a fake news do dia seguinte, a hashtag delirante de apoio ao capitão, a mensagem mais abjeta de ódio, ressoaria ali antes de explodir o Twitter ou aparecer na boca da primeira-família. Ter a consciência disso tudo, porém, é uma coisa; mergulhar de cabeça no chorume digital e tê-lo diante dos olhos todos os dias é outra. Até hoje tenho palpitação ao abrir o arquivo das mensagens.

Como a imprensa tem reportado a respeito das células digitais pró-governo, o “meu” grupo havia sido aberto por um celular sem identificação e de fora do país (de Portugal, a julgar pelo código). Tinha quatro administradores, dois de São Paulo, um de Recife e um de Natal. Muitos membros do Nordeste. E nenhum superego.

Como nos “dois minutos de ódio” de Orwell, as pessoas ali podiam extravasar à vontade seus sentimentos em relação aos Goldsteins da vez. Não tabulei os dados, mas os campeões de menções eram Lula e o PT, a esquerda em geral, os “comunistas” (sério!), a Rede Globo (“Globolixo” ou “câncer” para eles), o STF, o Congresso e a almôndega taxonômica na qual os integrantes agrupam a turma do “gênero” (gays, feministas etc.). O alvo que me interessava pessoalmente, as ONGs, vinha abaixo dessa patota – um espanto, considerando que o grupo fora criado em agosto, no auge da crise das queimadas – e acima do papa Francisco. Sua Santidade foi vilipendiado por uma das administradoras, K., que o chamou de “falso papa” e “capeta travestido”.

Entre as coisas que eu me obriguei a ler e ver nesse período estão pérolas como “a força da esquerda é o homossexualismo” e um elogio à execução de um criminoso rendido por policiais supostamente nos EUA num vídeo. Xingamentos sem fim à grande imprensa e ao jornalista Glenn Greenwald e repetições de parvoíces como “cem mil ONGs na Amazônia e nenhuma no Nordeste”.

Um dos administradores, D., de tempos em tempos deixava escorregar mensagens que traíam a intenção de testar a fidelidade da base ao comandante-em-chefe. Pelo menos uma vez postou um card sobre “Bolsonaro 2022” e alguma pergunta sobre intenção de voto, com uma mensagem: “Espero que todos respondam”.

Os administradores também usavam o grupo para comandar ações de “Blitzkrieg” digital contra os inimigos do momento. O comediante Gustavo Mendes foi objeto de uma dessas convocatórias no começo de setembro, depois que reclamou em suas redes sociais de ter sofrido tentativa de censura por bolsonaristas num show em Teófilo Otoni (MG). O grupo foi chamado a dar “dislikes” no perfil do humorista. Dias depois um printscreen mostrava orgulhoso o resultado: 94 mil polegares para baixo.

Os ataques vinham no ritmo do noticiário. Quando João Dória renegou Bolsonaro, por exemplo, começaram a pipocar no grupo “reportagens” de veículos da extrema-direita afirmando que Dória era a favor da “ideologia de gênero”, para censura geral. Em outros casos as mensagens antecipavam o noticiário: o beijo gay da HQ dos Vingadores já escandalizava as “pessoas de bem” do meu grupão de zap em 3 de setembro, dois dias antes de Marcelo Crivella mandar recolher a obra da Bienal. “Pronto agora lascos [lascou] de vês até nos quadrinhos daqui a pouco o Batman trajando Rosa e a capa cheia de purpurina”, comentou, com ortografia característica, um administrador do grupo.

Em pelo menos uma ocasião vi uma fake news ser desmentida no ato por um “infiltrado” (havia mais como eu): um vídeo no qual uma mulher de sotaque perfeitamente carioca (que fora candidata do PSL nas eleições, mas isso não era dito) “denunciava” que “aqui no Ceará” o governo estava promovendo masturbação infantil (sempre ela) nas escolas. Grita generalizada. Um cearense do grupo interveio: “Minha cunhada é coordenadora de escola aqui e disse que isso não existe”.

Outro infiltrado teve a audácia de postar um pedido de impeachment do presida. Foi expulso na hora. As execuções virtuais eram seguidas de uma figurinha sinistra de um soldado camuflado batendo continência. Quando alguém abandonava o grupo, era alvo de chacota. Decidi que não sairia de moto próprio, só pra não ser avacalhado por aquelas pessoas.

Eu mesmo tentei um bocado de vezes desmentir atrocidades mais óbvias sobre meio ambiente e Amazônia (“não, amigos, o cacique Raoni não mora em Paris e não fala só francês”). Para não dar muito na cara, de vez em quando lascava um “não passarão!” para falar dos inimigos do regime, na esperança (acertada) de que ninguém ali conhecesse La Pasionaria. Meus alertas, porém, eram solenemente ignorados. Nem mesmo quando eu inventei um textão ernestiano propositalmente cheio de erros de português E CAIXAS ALTAS argumentando que o negacionismo climático era invenção dos COMUNISTAS eu tive sucesso. 

No fim, não sei o que me denunciou. Talvez tenha sido o fato de ter ironizado um fulano que se dizia evangélico e que lá pelas tantas defendeu que um outro sujeito deveria “tomar um tiro na cara”. Ou ter chamado de picareta um guru de Youtube qualquer que se dizia “doutor” mas nem Lattes tinha, frustrando uma senhora que aparentemente era seguidora do fofo. Ou ter respondido mais de uma mensagem com um impaciente “isso que você disse é uma imbecilidade”.

Eu sei, o Pablo Ortellado diz para não fazer isso, para abandonar a santarronice progressista e “engajar” com essa gente. Jeová tá vendo que eu tentei. Mas meu mergulho virtual no esgoto ideológico da extrema-direita me indica que isso é inútil: essas pessoas estão fechadas a qualquer coisa que não reverbere com as crenças e a experiência imediata delas, e têm no ocupante do Palácio do Planalto um irmão de alma. A máquina digital de mentiras e ódio que alimenta o centro do poder no Brasil e é por ele alimentada tem feito muito bom proveito disso. Não há retorno ao normal em vista. O normal agora é esse.

A menos, claro, que o grupo inteiro, e vários outros do tipo, seja uma imensa pegadinha da esquerda na qual dezenas de infiltrados postam absurdos de propósito para enquadrar a direita na lei das fake news. Antes que você ria, essa conversa circulou no grupo poucas horas antes da minha eliminação.

Mas, ó, eu devo ter ganho a figurinha do soldadinho. Alguém bateu continência pra mim, pelo menos.

*** 

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

 

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