Ninguém manda em mim

Noemi Jaffe

 

"Olhe para ele. Ele consegue costurar. Não é algo que ele pudesse fazer enquanto ainda estava vivo. Morte."

Repare na palavra "morte", ou melhor, na frase "morte": essa palavra sintaticamente sozinha, humilde ou arrogantemente expressiva. O que ela quer dizer e quem a está dizendo?

Ela parece dizer, contemplativa: "a morte é imponderável" ou "que saco essa coisa de morte" ou "como é que eu fui parar aqui?" ou "que palavra estranha". Não se sabe ao certo o significado dessa oração nesse contexto e a função é justamente, pela forma como ela foi colocada, deixá-la assim, maleável, disfuncional. Sabe-se, ou sente-se, entretanto, que ela exerce uma função crítica: estabelecer um peso, um contraponto grave ou de reclamação ao que se falava antes com naturalidade (costurar, ele consegue), uma ponderação cabal. Acabou o parágrafo e, junto com ele, um sonho de estar vivo.

A frase está escrita no famoso "discurso indireto livre", aquilo que todo mundo gosta de dizer mas ninguém sabe muito bem direito o que é e muito menos como e quando usar. As duas frases anteriores estão claramente escritas em discurso indireto: "ele consegue" e "não é algo que ele pudesse fazer enquanto ainda estava vivo". Nelas, o narrador em terceira pessoa domina a cena, a trama e, aparentemente, o personagem. Deixa que eu sei dele, até o que ele faz quando está morto e o que fazia quando vivo. Tudo isso, ainda por cima, precedido de uma primeira frase no imperativo, "olhe para ele", em que o narrador, não contente em dominar o personagem, ainda domina um interlocutor (leitor, outro personagem?). O narrador brilha aqui, é um rei. Mas vem o "morte" e um reino parece se deslocar para o lado. É como se a "morte" tivesse entrado de supetão na narrativa, como se ela tivesse invadido o controle do narrador e se imposto a ele: "agora entro eu". Claro, diante da morte não se brinca. "OK", o narrador concordou, "você entra aqui".

Quem diz "morte"? É claro que o narrador, pois é ele quem conduz a história e constata, abnegado ou surpreso: "Morte". Mas é claro que é também o personagem que, depois de dado como morto pelo narrador, ousa tomar a voz de empréstimo ou por puro roubo e reclama para si: "Morte". E é claro que é também a própria morte que penetra na história e se impõe: "Eu"; não há como fugir de mim.

O discurso indireto livre, que poderia se chamar "livre pensar é só pensar" ou "ninguém manda em mim" é essa multivocidade inadvertida, um sopro de ar no comando de uma história, a indecibilidade sobre quem conta e o que se quer dizer, uma fraqueza bem vinda no controle das coisas. Para o escritor, é também uma libertação, embora difícil e, para o leitor, uma alegria desafiadora. O que faço aqui?

Ali Smith, autora do trecho, extraído do romance Autumn, ainda sem tradução no Brasil, é dessas escritoras que acolhem e praticam a perda do eixo narrativo. Eu, obedientemente, a invejo e copio.

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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

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