Fui a Portugal porque escrevo sobre gibi

Érico Assis

 

Pisquei e estava na fila da Polícia Federal. A portuguesa. Alcimar Frazão me mandou mensagem: "Estou te vendo." Ele tinha vindo em outro voo, mas tomou outro rumo. Eu, minha camiseta do Eternauta, minha mala de brasileiro e minhas vinte horas de viagem fomos para o restaurante onde era convidado para almoçar com André Diniz e Rodrigo Rosa. Sendo eles quadrinistas, achei que no máximo íamos esbanjar num Spoletto. Só que o restaurante tinha hostess, o restaurante tinha um chef estrangeiro (a quem fui apresentado), um enólogo (a quem também fui apresentado), um proprietário que administra um festival de artes (também) e uma sequência de três horas de microporções sobre megapratos. O cara mais legal e mais à vontade na mesa era da Embaixada do Brasil e estava de terno. Eu estava com minha camiseta do Eternauta e olheiras de quem passara a noite fingindo que a cadeira da TAP reclinava mais que 0,3°. Nossa anfitriã se revelou prima do Ziraldo. Em mais graus que a poltrona do avião reclinava.

Eu tinha chegado a Portugal para falar do gibi brasileiro.

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A missão me fora confiada há seis meses: fazer uma seleção do quadrinho brasileiro que possa ser divulgada no exterior. Um projeto do Ministério das Relações Exteriores administrado pela Bienal de Quadrinhos de Curitiba. O Itamaraty fez projetos recentes com a arquitetura brasileira e a música erudita brasileira. Uma alma iluminada da diplomacia resolveu que era hora do quadrinho nacional. E entrou em contato com a Bienal, que entrou em contato comigo.

O Catálogo HQ Brasil está pronto e vai circular sobretudo em PDF: baixe o seu aqui. Ainda vai ganhar versões em outros idiomas e acompanhar outras iniciativas do Itamaraty de promoção do quadrinho nacional no exterior. Há uma edição limitada impressa. Em algum momento dos seis meses se falou em evento de lançamento. Fui convidado.

Claro, respondi. Muito obrigado. Onde?

Lisboa.

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Fui apresentado a um cara que seria "eu em Portugal": um jornalista de lá especializado em quadrinhos. O João Morales é de uma cultura oceanicamente mais vasta que a minha, mas concordamos que A View From The Cheap Seats é o melhor do Neil Gaiman. Circularam taças de vinho e uns canapés de tapioca. Pisquei e estava de frente para uma plateia, ouvindo falas do Embaixador do Brasil em Portugal e da Ministra Diretora do Departamento Cultural sobre a importância do quadrinho brasileiro e sua difusão no exterior.

Pisquei de novo. Queria me beliscar, mas estava na frente de uma plateia. O Itamaraty estava ali, do meu lado, promovendo o quadrinho brasileiro no exterior. Diego Gerlach, Bianca Pinheiro, Laerte, Garota Siririca e Sopa de Salsicha. Um embaixador e uma ministra. Ali, do meu lado.

Falamos – eu e meus amigos de restaurante, André Diniz e Rodrigo Rosa – sobre quadrinho no Brasil. João Morales mediava e provocava a plateia de uns 50 (depois, 30) a participar. Trocamos figurinhas sobre situação brasileira/ situação portuguesa. Eles ainda não são dos comictubers nem tem um Catarse. Comentei que o primeiro quadrinho solo de uma autora nacional com ISBN provavelmente seja de 2012 e a Lucia Veríssimo – peraí, é a Lúcia Veríssimo? – disse que esse é um dos motivos para ela não fazer mais cinema no Brasil. Chris-Nicklas-a-que-era-da-MTV perguntou por que o mercado de quadrinhos não mirava seu filho de 16 anos – sentado ao lado dela, enterrando o rosto nas mãos toda vez que era mencionado – e eu também queria saber, Chris-Nicklas-a-que-era-da-MTV.

Um professor português me alugou para dizer que o que falta no quadrinho brasileiro é uma História do Quadrinho Brasileiro. Que era uma “vergonha”, que Álvaro de Moya era um “palhaço” e outros impropérios professorais. Tive que me livrar dele três vezes. Com jetlag, calor de 30 graus, fim de tarde às 20h, Chris-Nicklas-a-que-era-da-MTV fazendo perguntas e a Lúcia Veríssimo – era a Lúcia Veríssimo, confirmei – lembrei que não mandava nem um whats pra casa há horas, só para dizer que estava vivo. Estava, acho.

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Lugares mais inusitados onde já estive porque escrevo sobre gibi: Rosario, norte da Argentina; Hildesheim, Baixa Saxônia; o metrô de São Paulo à meia-noite; Beja, sul de Portugal.

Beja é meio cidade de ruelinhas medievas, meio balneário sem praia. Vinte e três mil habitantes segundo a Wikipédia, mas me disseram que é menos. Comentavam que teve sensação térmica de 54° em anos recentes. Naquele fim de semana só chegou a 37°. Bergamotas azedas despencavam das bergamoteiras atrás da Casa da Cultura. Na tenda do evento, as capas duras dos intégrales vergavam de calor e eu lutava para não fazer a conversão euro-real. Mas fazia, por sobrevivência.

Rui Brito, da Polvo – melhor editora de quadrinho brasileiro do mundo (publica D’Salete, Quintanilha, Aguiar, Diniz, Ducci, Nunes, Odyr, Neco, Coutinho, Frazão) – me perguntava das chances do quadrinho português no Brasil. “Você sabe que o último Quintanilha saiu lá por crowdfunding, né, Rui?”. Ele sabe, eu não precisei falar. Pedro Bouça, tradutor e interlocutor desde que a internet era mato, me apresentou o novo Bilal, Bug. Falei que não gosto de Bilal. Ele disse que eu estava errado. Discordamos há mais de vinte anos via teclado, finalmente discordamos ao vivo. Tinha um ponto de ônibus ao lado do evento. O ponto de ônibus tinha uma poltrona com guardanapo de renda, uma mesa e uma taça de vinho.

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O hotel de Lisboa era um AirBnb que se disfarçou no Booking para cobrar mais. A inclinação da rua do hotel era toda inclinação que eu queria pra minha poltrona da TAP. Saí para procurar jantar, me ofereceram haxixe quatro vezes. Meu sobrenome em português português é “haxixe”. No sábado, uma banda de funk brasileira mandou tocar o canal do YouTube deles para todo o restaurante enquanto eu tentava me concentrar no meu bacalhau. Eles chamam meninos de putos e o livro do Jack Kerouac de Pela Estrada Fora. Tinha formatinhos dos anos 1980 da Abril na Feira do Livro. “O bom de Portugal é que você fica bem perto da Europa”, ouvi, não lembro de quem. O André Diniz, lisboeta há três anos, diz que tem custo de vida menor e qualidade de vida maior que no Brasil. Me deixou um pouco zureta no voo de volta. A nova poltrona inclinava 0,5°. Não sei se eu dormi. Não sei se eu acordei. Parece que o Itamaraty está promovendo o gibi brasileiro no exterior e eu passei quatro dias em Portugal porque escrevo sobre gibi. Parece

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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

 

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