Escavar e recordar

Marília Garcia

 

São Paulo chegou aos 37 graus essa semana e, por três dias consecutivos, foi quebrando o próprio recorde de segunda maior temperatura de sua história. Pesei muito os prós e contras e acabei optando por deixar brevemente o forno do apartamento, depois de meses sem sair, para dar uma volta no parque. Chegando lá, deparei com a placa que abre este texto com a chamada da Bienal de São Paulo que aconteceria este ano. O letreiro é um resquício do futuro do passado, ou seja, o tempo congelado no passado apontando para um futuro que já passou, mas que não aconteceu. Em fevereiro, pretendiam fazer, ao longo do ano, uma espécie de ensaio da Bienal até sua abertura em setembro, o que justifica a presença da placa com tanta antecedência. O título dela seria: “Faz escuro mas eu canto” (grifo deles).

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O verso do poeta amazonense Thiago de Mello, do poema “Madrugada Camponesa”, publicado em livro em 1965, vira música no ano seguinte (por Monsueto) e é gravada por Nara Leão no disco “Manhã de Liberdade”. Na contracapa do disco, Ferreira Gullar diz que Nara “protesta, faz-se veículo da insatisfação popular e dá voz a esperanças sufocadas [...] Tudo naquela voz sensível e estranhamente emocionada.”  Dá para imaginar o alcance da música à época: a voz emocionada de Nara trazendo tantos mundos e promessas de futuro. No site da Bienal, os curadores contam que, ao ser preso em 1968, Thiago de Mello entrou na estreita cela onde passaria 52 dias e deparou com o verso de sua autoria escrito na parede pelo preso que tinha estado ali antes dele: “Faz escuro mas eu canto.” 

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Cantar na adversidade, como Orfeu que, graças ao seu canto, vai sendo guiado pelas profundezas do Hades em busca de Eurídice, seu amor, sua vida. O canto se propaga, se transforma de acordo com o contexto.

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Preso também em 1968, logo depois do decreto do AI-5, Caetano Veloso conta que durante os 54 dias em que passou no cárcere fez uma única canção: compôs na cabeça, sem violão, e ficava repetindo o refrão, “Irene ri”, tentando tornar presente a risada de sua irmã adolescente. A canção traz uma simplicidade, uma alegria, uma força de vida que contagiam tal como o riso que aparece no refrão. Além de ser um palíndromo (fato que, segundo o cantor, tinha sido notado por Augusto Campos já que ele não percebera ao compor), “Irene ri” vai sendo repetido várias vezes até criar um mantra risonho, espécie de canto que explode apesar do escuro. “Eu quero ir”, “eu não sou daqui”, diz ele.

 

Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui
Eu não tenho nada, nada
Quero ver Irene rir
Quero ver Irene dar sua risada
Irene ri, Irene ri, Irene

 

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Caetano narra o episódio de sua prisão no capítulo Narciso em férias, do livro Verdade tropical, transformado há pouco em livro e em documentário, de Renato Terra e Ricardo Calil. O motivo para o resgate desta história agora se deve a uma pesquisa de arquivo, feita pelo historiador Lucas Pedretti, que encontrou os documentos do processo aberto pela ditadura militar contra o cantor e compositor. Disponível online no site do Arquivo Nacional, o material contém o interrogatório feito com Caetano já no final do período do cárcere, que foi quando, enfim, revelaram ao cantor o motivo de sua prisão (ao contrário de outros presos políticos que podiam deduzir o motivo da prisão por algum envolvimento político mais explícito, o cantor lembra no livro que ele era na época até mesmo criticado pela esquerda por “falta de engajamento”, o que tornava ainda mais insólita sua prisão). Parte deste material arquivístico consta agora da edição de Narciso em férias.

 

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Encontrar um documento como este é deparar com um pedaço do passado, com um objeto nítido, claramente visível. Talvez seja hora de escavarmos mais, como um arqueólogo (benjaminiano), em busca de pedaços, fragmentos e restos, para podermos recordar. Como diz o teórico Georges Didi-Huberman, no livro Cascas, “a arqueologia não é apenas uma técnica para explorar o passado, mas também e, principalmente, uma anamnese para compreender o presente.” (São Paulo: Editora 34, p. 67)

 

PS.

Dei uma busca online no site do Arquivo Nacional pelos nomes que cito nesta coluna e, de fato, há lá uma memória gigantesca documentada e digitalizada, ao alcance da mão —  de prontuários contendo informações sobre artistas, pensadores, críticos, passando por fotos até letras de música e livros atravessando a censura. O passado esperando para ser escavado.

 

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Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

 

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