Em tradução (O mundo)

Caetano Galindo

Foto: Jan Troyka/ Getty Images
 

O filósofo Walter Benjamin, num texto de 1923 que é pra lá de conhecido na área, chamado “A tarefa do tradutor”, já de saída apresenta uma ideia bem poderosa. Uma ideia que pode na verdade insinuar que a tradução, ao invés de ser o “problema” (a “traição” que tantos gostam de evocar) pode muito bem ser a “cura”.

O raciocínio dele parte do fato de que a grande arte nunca pode ser produzida tendo em vista um público específico. Segundo ele, a única condição para a existência dessa arte é a existência de seres humanos. Ou seja, a arte como carta aberta, a toda a humanidade, sempre.

É claro que ele, num texto de quase cem anos atrás, subestima muito do que de fato é culturalmente condicionado mesmo em certas coisas que a gente pode considerar “universais”. Mas o raciocínio tem sua força, mesmo assim. E o que ele nos leva a ver é que a literatura, arte da linguagem, se vê por força como que “presa” a UM idioma, e que isso delimita de maneira inadequada o seu público.

 

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O grande poema, um belo romance, um peça de teatro transformadora… Essas coisas deveriam se destinar a toda a humanidade. E não apenas à pequena parcela dessa humanidade que, por total acaso, calha de saber ler a língua da autora. (Isso sem nem falar de quem nem sabe ler de todo.)

Qual o remédio pra isso?

Traduzir.

Levar o texto a mais culturas, mais pessoas. Ao mundo todo.

 

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Estamos em tempos de Flip, uma festa que afinal é mundial. Vem gente de tudo quanto é canto pra falar dessa coisa “universal” que nos une em traduções. Vem gente de todo o mundo pra conversar com tradutores, intérpretes, que podem ali mesmo, ao vivo, levar ainda essa conversa a outras pessoas. Estamos numa Flip que tem entre suas atividades toda uma programação concebida, gerida e mantida por um tradutor, o grande Daniel Dago com seu Barco Holandês.

Estamos no momento de uma festa de tradutores, querida leitora. Não se deixe enganar. Uma festa possibilitada por tradutores.

 

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Quer ver só a escala da coisa?

Em 2017 esteve na Flip o islandês Sjón. Fez sucesso por aqui.

Bom… o islandês Sjón escreve, pasme, em islandês. A língua islandesa (interessante que só, pra qualquer um que curta as línguas germânicas, inglês incluso) tem pouco mais de 300 mil falantes. Isso é coisa de 0,005% da população mundial hoje. Ou seja, mais ou menos uma em cada 20 mil pessoas vivas hoje seria capaz de ler a obra de Sjón.

Agora você faz o seguinte. Dentre essas 300 e poucas mil, você seleciona 10 indivíduos bilíngues, cada um deles falante de uma das dez línguas mais faladas no mundo (e o português está aí nesse bolo). Você deixa essas dez pessoas trabalhando por algumas semanas, espera mais um tempo para dar conta do lado editorial, prático da questão toda, e em poucos meses você pode ter 10 novas versões de um dado livro de Sjón, que agora de repente pode alcançar quase 4 bilhões e meio de pessoas… De uma população total de 7,5 bilhões.

Vê se não é poderoso?

Dez indivíduos são capazes de ampliar o potencial de alcance de uma certa obra 25 mil vezes! Pra cada leitor do original eu tenho agora 25 mil potenciais leitores. Depois do trabalho de dez figurinhas quietinhas nos seus cantinhos.

 

O holandês tem mais de vinte milhões de falantes, e entre eles está o Daniel Dago. Entre eles está a Mariângela Guimarães. Entre eles estão todos os tradutores, aqui e pelo mundo, que permitem que os holandeses falem com o mundo todo. Que permitem que a literatura seja do mundo todo, seja da humanidade.

 

É tempo de Flip.

Desculpem o que haja nisso de cabotino (e eu nem nunca fui à Flip!), mas um brinde aos meus colegas.

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Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James JoyceDavid Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

 

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