Em tradução (O horror)

Caetano Galindo

 

Traduzir é complicado.

Ok, você já entendeu essa parte, depois de ficar me ouvindo gemer aqui por anos e anos a fio.

(Traduzir também é, pra mim, digamos, a terceira atividade mais prazerosa da vida. E a segunda que dá pra fazer em público.)

Agora, recém-saído do longo projeto-Eliot, não posso deixar de lembrar também que traduzir poesia é um tantinho mais complicado. É mais ou menos como Laurence Olivier teria dito, uma vez, depois de ver Plácido Domingo em cena: “ele faz tudo que a gente faz, e ainda canta!”.

O tradutor de poesia (aquela: a rimada e metrificada) tem que dar conta de tudo que já aparece na prosa, e ainda fazer caber num dado número de sílabas, com os acentos nos lugares certos, e com determinado som no final de cada segmento.

Você já sabe isso também.

Eu até já falei do horror nível 3. Quando você tem que traduzir, tem que rimar, tem que metrificar, e ainda precisa manter uma discursividade direta… tipo, não pode “soar difícil”. Os poemas do “Livro dos gatos sensatos do Velho Gambá”, no volume da poesia de Eliot, são uma amostra desse problema.

Olha só esse.

 

Inter-pelar um gato

Falei de tudo quanto é Gato,
Portanto agora eu só constato:
Você não tem impedimento
Pra ler o seu temperamento.
Pelo já dito você vê
Que os Gatos são como você
Ou eu, ou nós, ou tanta gente:
Que cada um é diferente.
Se um é são, outro é bem louco,
Alguns são tanto, outros tão pouco.
Um é resposta, outro é problema —
Mas cabem todos num poema.
Você viu gordos e viu fome,
Ficou sabendo do seu nome,
Seus hábitos e seu formato:
Mas
          Como inter-pelar um Gato?

Primeiro, breve anotação:
Recorde: GATO NÃO É CÃO.
Cães amam simular desordem,
E latem, mas nem sempre mordem;
Mas no geral um cão seria,
Uma alma simples, eu diria.
É claro que há também Pequins,
Canídeos monstros, e mastins.
Mas apesar do estardalhaço
Um cão normal é mais palhaço
E longe de ser orgulhoso
É normalmente vergonhoso.
É fácil pôr um cão na linha —
É só fazer uma cosquinha,
Ou um carinho no seu queixo,
Que ele é só riso e remelexo.
É gente boa, e tão tranquilo
Que atende sempre, sem estrilo.

E não se esqueça deste fato:
Que cão é cão — e GATO É GATO.

E há uma regra sugestiva:
Deixar ao Gato a iniciativa.
Eu acho isso muito chato —
Por mim, que se inter-pele o Gato.
Mas eles sempre, isso é verdade
Detestam muita intimidade.
Para evitar um desacato,
Eu Inter-pelo: OH, CARO GATO!
Mas sendo o gato do vizinho,
Que vejo sempre no caminho
(Que me visita, e que é cordato)
Eu digo UPA LÁ, SEU GATO!
Seu nome, eu acho, é Téo Tão Tonto,
Mas não chegamos a tal ponto.
Pra um gato vir a tolerar
Ser seu amigo e te aceitar,
Dê algo que ele não rejeite
Como um pratinho só com leite;
De vez em quando aceitará
Um caviar, ou um foie gras,
Uma compota ou um salmão
Mas cada qual tem sua opção.
(Eu sei de um que é bem fedelho
E exige só comer coelho,
E quando acaba, lambe a pata
Sorvendo o caldo de batata.)
O Gato exige, por direito
Ter essas mostras de respeito.
E o seu receio um dia some,
E enfim você diz o seu NOME.

Pois ganso é ganso, e pato é pato.
E é assim que se INTER-PELA UM GATO.

 

Fofinho, né? (Se tudo deu certo…). Mas não acaba aqui. Tem ainda o horror nível 4, em que você precisa traduzir, rimar, metrar, discursivar (ok, ok, ok…) e ainda tem que, digamos, fazer rir. Manter a piada.

E se a isso tudo a gente soma o horror nível 5, quando além de… cê sabe… além de tudo aquilo você precisa manter a tradução cantável de acordo com uma melodia pré-existente. Com as suas regras… que são ao mesmo tempo mais e menos rigorosas que a contagem de sílabas da poesia de papel. Afinal, na música você consegue ensalsichar uma sílaba a mais aqui, alongar uma outra acolá… Tem dessas.

Uma vez eu fiz uma tradução pro inglês de uma canção pra um projeto aqui desta casa editorial. Pra garantir, mandei junto com o resultado uma gravação de mim mesmo no uquelele cantando como devia ser encaixado… (essa gravação, se divulgada, acabará com qualquer sombra de respeitabilidade que eu ainda tenha conseguido manter.)

Tem dessas.

 

Tudo isso pra dizer o quê, mesmo? 

Hein, seu Caetano?

 

Pra dizer que pra enfrentar o horror nível 6, nível número da besta, que tem sido o noticiário cotidiano, eu te deixo aqui com uma tradução de uma canção do mais-que-brilhantíssimo Tim Lehrer.

Divirta-se

 

Seguro a tua mão, dou
Um beijo sem ter medo Arranco uma lasquinha
Da ponta do teu dedo

Amor, que bom seria,
Não ter que te ver partir!
Mas guardo essa mãozinha
Como um belo souvenir

Cortei quando você morreu
Sem ter razão exata;
E agora a cada beijo meu
Vem sangue na gravata

Lamento o assassinato,
Pois morria de paixão!
E enquanto não me prendem
Eu seguro a tua mão.

 

***

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James JoyceDavid Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

 

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