Como você pode não acreditar

Jarid Arraes

Conto lido no podcast Budejo:

Foto por Jarid Arraes

Acidente geográfico tocando as solas dos meus pés. Descalça, eu segurava minhas botas de quem já não sabia como vestir aquele lugar. Tinha dezenove anos na última vez em que visitei a Chapada do Araripe e, no braço esquerdo, a tatuagem com a frase da música do Steppenwolf cicatrizava. Nascida pra ser selvagem. Ali, procurava qualquer pena ou garra esquecida. Desencontrada, caçando capenga, o nariz entupido pelo último mês.

O carro estava parado na entrada da trilha. Eu não tinha medo de caminhar pela madrugada. Sem precisar espremer qualquer honestidade, queria ser encontrada por alguém que também quisesse me encontrar. Que olhasse pra mim e enxergasse burrice, quando, na verdade, meu corpo andava passos firmes de escolha. Qualquer lugar era lugar. Mas ali seria mais bonito. Era o melhor que podia imitar daquela paisagem que te descrevi perfeita: árvores altas com um caminho bem traçado ao meio, névoa, frio. Não era o frio que eu queria, não eram as árvores que eu imaginava, mas a terra era macia e me lembrava seu corpo, escorregando entre meus dedos. Você, mulher vingança que colocaria fogo naquele acidente inteiro, desmataria o mundo imagético de quem sou, espantaria todos os animais, me faria pó.

Depois de avançar metade da trilha, sentei no chão da clareira. Não levei nada, até as chaves do carro deixei na ignição. Sem lua no céu, só um monte de estrelas intrusivas, forçando beleza, empurrando nomes de constelações, signos, mapas astrais, uma desproporção. Eu cética, você energia. Alcançando meu corpo do outro lado de outro mundo. “Como você pode não acreditar em energia? Olha isso aqui, isso aqui”, queimando meus olhos enquanto guiava minha mão pra sua mão, prova inquestionável de que tínhamos campos magnéticos e gravitacionais. Dois planetas. E eu no chão, toda suja de terra, pensando em quais.

Não tirava férias há cinco anos. Não pedia férias há cinco anos. Não pedia nada pra ninguém, só seguia o ritmo de quem se obstrui pra não deixar passagem. As entradinhas são perigosas. E você se entocou bem ali, num vacilo entre uma reunião e uma cerveja ruim que eu bebia por educação. Me fez comprar essa passagem ridícula na pior época do ano. Os dias tão quentes, os romeiros que tomam o centro da cidade. Eu queria estar em São Paulo, vi no celular que agora está fazendo doze graus. Poderia sentar no parapeito da varanda, perder a conta das estrelas dos prédios, esquecer isso tudo de natural. Abraçar a artificialidade das coisas que terminam de repente.

Quando cheguei aqui, vó me deu um rosário. Tão feliz porque vim visitar. Sentamos nas cadeiras de balanço da cozinha, conversamos sobre a família e eu fingi ter fé. Ainda sei rezar, lembro de todas as palavras e, no fundo, acho bonito. Vejo a beleza da segurança nos olhos de avó, que sorri satisfeita não enxergando minha descrença em tudo. “Que rosário lindo, vóinha, deve ter sido caro, não precisava”. Mas é claro que sempre precisa. O que eu não te presentearia, conta a conta?

Os vizinhos ficaram me olhando, reparando nas botas pretas de cano curto, na jaqueta jeans, nas mais de dez tatuagens novas. Acho que saí correndo e entrei no avião sem pensar em adequações. Queria tirar férias no inverno onde as roupas que gosto não são suficientes. Sozinha no acidente geográfico, tentei lembrar se te contei que gosto de passar frio. Se te falei que não tenho nenhuma roupa que esquente de verdade, porque o frio me faz o alívio.

Vó fazia baião de dois na vagareza de seus muitos anos e eu soltei um “vóinha, a senhora já quis morrer?”. Ela me olhou assustada, deixou o coentro em cima da tábua, veio passar a mão no meu cabelo. Que história é essa, né? “Minha filha tá bem?”. Não pude responder com a voz, balancei a cabeça. Emendei com o aviso de que sairia a noite pro Crato, não disse que pra serra.

Eu te enviaria o rosário por sedex, se tivesse planejado isso tudo melhor. Cada bolinha pra uma das vezes em que você me fez sentir possível. Cada bolinha pra um dia de férias no inverno. Eu com minhas botas, minha jaqueta, ouvindo heavy metal, não encontrando ninguém que quisesse ouvir minhas músicas comigo. Mas você ali, fingindo que gostou de uma música, fingindo que entendeu aquela coisa cabeça que eu disse. Eu te enviaria o rosário e um bilhete com um poema assim:

 

como você pode
não acreditar
entre o fogo
dos teus olhos
e a carne
queimada
dos meus dedos

debulhei
essa oração
mas não creio

um dia se tudo
que se diz
existir
for existência

queimaremos

 

Deitei na terra, lembrei de vóinha, da minha varanda. Lembrei do avião decolando e te deixando pra trás. “Tomara que esse taxista não me largue num bueiro porque viu a gente se beijando”. Seu silêncio. “Como você pode não acreditar em energia?”. Eu cética.

Seu fogo veio pra me matar. E ali eu morria.

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

 

Neste post