As mãos

Djaimilia Pereira de Almeida

Foto: Djaimilia Pereira de Almeida

Desde que passei a escrever muitas horas por dia, percebi como as mãos estão implicadas na escrita, tanto quanto o coração, a cabeça, o estômago. Desabituadas, as mãos começaram a doer-me e eu a temer que me falhassem. Tenho vindo a aprender a ouvi-las, como quem aprende a escutar outra pessoa; a aprender a parar, a abrandar, quando precisam de descanso; a acompanhar o seu ritmo, quando se apressam; a alinhar a minha respiração com a sua.

Dou-me conta da sorte que é que me obedeçam, ao mesmo tempo que, caprichosas, impõem a sua força, o seu ímpeto, ou o seu cansaço.

Venho recordando os seus acidentes, percebendo pelo caminho que uma história breve das mãos da minha vida é também uma identidade, ainda que despercebida, discreta, omissa.

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Na palma da mão esquerda, uma das linhas, a da cabeça, está quebrada. Uma das extremidades da linha namora a linha de cima; a outra, bifurca-se em duas ramagens, que se esbatem, um pouco adiante. Na palma da mão esquerda dele, a mesma linha está quebrada, também. O corte da linha não representa duas vidas, nem duas fases da vida. Talvez importe não que se partam, mas o silêncio entre as pontas. Entre as extremidades, ar.

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As mãos da minha mãe são as mais belas, sempre foram. Não exagero. Os dedos compridos. São mãos grandes. As unhas, sempre curtas, cor de crème diplomate. As palmas, trabalhadoras. Nem receosas nem delicadas demais. Sempre lavadas e curiosas. O segredo está nos pulsos; as veias salientes, arroxeadas, rizomáticas. São mãos firmes que nunca me bateram. (Que eu me lembre.)

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Aprendi a cortar papel com as mãos da avó D. na minha mão, claras, de pele fina, as veias salientes, azuladas. Nervuras nas unhas, levemente amareladas do tabaco. Não usava relógio, apenas as duas alianças (que se tornaram três). A mão direita dela muito branca agarrava na minha mão castanha. Doíam-me os dedos, porque fazia força demais.

Ensinou-me a dobar lã, também. Usávamos uma cadeira da cozinha. Com a meada presa às costas da cadeira, havia que rodar o tronco, numa elipse, e enrolar o novelo. Eu metia os pés pelas mãos. Perdia a paciência. Ela, graciosa, corrigia. Tirava a meada das costas da cadeira, passando atrás de mim, (um perfume de sabonete e laca dançava em círculo, à volta do meu pescoço). Sentava-se noutra cadeira, exemplificava. Os ombros dançavam, à volta da cadeira, como se nadasse de bruços. O novelo crescia nas suas mãos, como um milagre.

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Na mão esquerda, uma queimadura. Tenho-a desde os dois anos, quando me queimei no ferro de engomar. Quando era menina, ocupava toda a superfície da mão. As crianças perguntavam o que era, no recreio, um pouco enojadas. Eu contava a história. Nunca conheci a minha mão esquerda sem a queimadura. Esta não é uma cicatriz, mas parte do todo da mão, a par dos cinco dedos, das unhas, da força, do movimento.

A história da queimadura é, também, parte de mim. O que é que tens na mão?: não a primeira pergunta de uma auto-análise, mas a primeira senha para o mundo exterior.

Com os anos, à medida que a mão cresceu, o tamanho da queimadura parece ter diminuído. Os estranhos também deixaram de perguntar por ela, talvez por pudor.

Esqueço-me da queimadura, que não me recorda um dia em que me magoei. De vez em quando, dou com ela. Observo-a, esticando os dedos. É muda. A princípio, parecia ter vida própria e deslocar-se em direcção à palma da mão, num caminho que se iniciara no centro. Costumava sonhar que um dia ela estaria no centro da palma da mão, que mudaria de lado, de tanto se deslocar.

Agora, que a mão parou de crescer, a rotação da queimadura parou. Fixou-se logo abaixo do polegar.

A sua forma oval lembra uma medalha ou um relógio de bolso. Foi desenhada pelo calor, mas é calada como espelho. Nunca pensei em mim como queimada, mas, vendo bem, parece aquela cascata de fogo fictícia em Yosemite, provocada pela luz, a certas horas, certas estações. Nada arde, apenas pare de arder. Nada se perdeu, mas é como se se tivesse perdido.

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Djaimilia Pereira de Almeida (Luanda, 1982) é autora de Esse cabelo (2015), Ajudar a cair (2017) e, mais recentemente, Luanda, Lisboa, Paraíso (Companhias das Letras Portugal, 2018; a ser publicado no Brasil em 2019). Vive em Lisboa.

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