Algo de bom no mundo da poesia

Marília Garcia

Foto: whitemay/ GettyImages

 

Contam que Chico Alvim, ao receber um prêmio Jabuti em 1982, disse que tinha ficado muito feliz mas extremamente vaidoso, sentimento esquisito que estava agindo “às avessas”. Ele começava a desconfiar dos elogios e invejar os que não tinham recebido o prêmio, como se a premiação lhe desse um estatuto institucional que não combinava com a poesia dele, independente.

A anedota ilustra um dos debates que, cedo ou tarde, surge quando o assunto é a “geração marginal”. Como o adjetivo que nomeia o heterogêneo grupo é usado para se referir à produção e distribuição (feitas “à margem” do mercado), e não a uma característica formal que reúna os poetas, a publicação por editoras, a consagração ou profissionalização desses escritores geralmente é vista como um contrassenso completo. (comentei um pouco o assunto no poema “tzaratzaratzaratzara...”).

Estamos num terceiro momento das reedições dos livros “marginais”. O primeiro foi com a Cantadas Literárias e a Claro enigma, nos anos 80. Depois, perto dos 2000, vieram a Ás de Colete, da Cosac, e os livros da Ática e da 7letras. Mais recentemente (ainda em processo), as edições da Companhia das Letras (puxadas pelo estrondoso Leminski) e da 34 (Chacal). Há quem diga, quando um livro de poemas sai em tiragem comercial, que poesia e mercado não dão bons casamentos. O próprio Cacaso comenta num artigo que escrever e publicar em grande tiragem são gestos quase sempre excludentes, mas que “quando um poeta de mérito é publicado em escala, algo de bom acontece no mundo da poesia”.

Ainda bem que em 2002 saiu o Lero-Lero, reunião da poesia do Cacaso.Ainda bem que chega pela Companhia, no próximo ano, outro volume dele, Poesia completa, com material inédito. Foi no Lero-lero que pude ler o poema “História natural”, de 1974, que não deixa de ser uma espécie de “autobiografia” ao tratar da herança e filiação:

 

História natural

Meu filho agora
ainda não completou três anos.
O rosto dele é bonito e os seus olhos repõem
muita coisa da mãe dele e um pouco
                                        de minha mãe.
Sem alfabeto o sangue relata
as formas de relatar: a carne desdobra a carne
                                        mas penso:
                          que memória me pensará?
Vejo meu filho respirando e absurdamente
imagino
como será a América Latina no futuro.

 

*

 

Cacaso anota num de seus manuscritos que era raro ele escrever um poema que não tivesse uma origem “suspeita”: “Eu pego tudo [...] Sou um poço de influências. Meu trabalho é ficar selecionando.”
(citação que tirei do livro Inclusive, aliás, excelente trabalho de Mariano Marovatto sobre o percurso intelectual de Cacaso.)

A declaração tem um quê de arte poética e foi depois dela que resolvi escrever um poema desentranhado do “História natural”. O texto do Cacaso estava me deixando cada dia mais comovida. Talvez por ter tido uma filha há pouco tempo, a Rosa. Talvez por estarmos nesta América Latina do futuro tendo apenas a perspectiva de uma nuvem de fumaça atravessando o continente.

 

História natural

sempre disseram
que eu tinha os olhos
do meu pai

cabelo estatura
queixo caligrafia
— cada coisa de uma tia
o jeito, da minha mãe

hoje olho minha filha
e só consigo ver
ela própria:
            rosa é uma rosa. é uma rosa
é uma rosa

penso num poema do cacaso
e na américa latina do futuro
que um dia ele quis imaginar

olho para a minha filha
e, juntas, olhamos para
esta américa latina
do futuro

estamos num túnel de fumaça
e não consigo ver o que aconteceu

 

***

 

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

 

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