Abrindo a escotilha, fechando a citadela

Marília Garcia

Foto: Dan Mititelu

 

Gostaria de abrir esta coluna como quem abre a escotilha de um submarino soviético. Tiro de lá esses versos da poeta Marina Tzvietáieva dedicados à Tchecoslováquia invadida pelos nazistas (com tradução do Augusto de Campos):

 

“Enquanto houver saliva
todo o país está em armas”.

 

Bem que eles poderiam ser ditos por alguém em 2019: na Síria ou noutro canto do mundo contemporâneo (no próprio Brasil, aliás). Pensei nestes versos ao assistir à última peça de Christiane Jatahy (O agora que demora) que trabalha com atores de diversas nacionalidades, todos em situação de refúgio. Além de filmá-los nos países em que vivem agora, o espetáculo também traz alguns deles para o palco e joga com as fronteiras entre cinema e teatro, documento e ficção. Impedidos de cruzar as fronteiras para voltar aos seus países de origem, eles cruzam as fronteiras da tela para a sala do teatro (e da sala de volta para a tela) como é o caso de Yara Ktaishe, atriz síria que faz parte da montagem.

Ao ouvir a história dela, fui procurar notícias de Fadwa Suleiman, síria que conheci em 2016 num festival de poesia em Iasi, na Romênia. Na foto acima, estamos voltando de uma leitura. Nos aproximamos de imediato, talvez pela rara delicadeza dela, pela curiosidade e disponibilidade para o outro. Fadwa foi uma das vozes que participaram do levante de 2011 na Síria contra o governo de Bashar Al-Assad, quando teve início a guerra civil. Liderou uma enorme manifestação na cidade de Homs que levou à sua perseguição (há vídeos no youtube onde se pode vê-la em ação). Fadwa precisou se esconder durante alguns meses e, em 2012, conseguiu fugir da Síria, primeiro para a Jordânia, depois para a França, como refugiada política.

Na França, começou a escrever e publicou três livros de poesia. Sua formação em artes dramáticas ficava evidente nas leituras que fazia em árabe. Era notável ouvir o poema cantado em outra língua, como se estivesse sendo feito na boca. Leio estes versos de Fadwa traduzidos para o francês:

 

no meio das roupas
sentada
com minha mala
parceira de tantos caminhos
conto a ela que em breve retornaremos
outra vez você vai usar
essas roupas que cruzaram as fronteiras coladas à pele
sim vamos voltar para casa
cruzar ruas e cidades
mais uma vez

 

Procurando notícias dela, me surpreendi quando soube que Fadwa teve um câncer e morreu no ano passado. Era jovem e ficou exilada até o fim da vida, sem conseguir rever sua família, estrangeira obrigada a morar em outro país carregando sempre sua mala (memória, afetos, história). Como lidar com o horror da guerra, com a perseguição política, com uma situação de refúgio como esta? Fadwa estava sempre em deslocamento, viajando, participando de festivais, contando a sua história. Diante de situações como a dela, parece que chegamos às perguntas mais simples: quem somos, como manter intacta a humanidade, como proteger nosso íntimo, “fechando a entrada da citadela” (como dizia Goethe)? Diante de situações como a dela, talvez seja preciso nomear as coisas, contar a própria história e conseguir carregar sua mala. Em outras palavras, se armar com saliva, como diz o poema de Tzvietáieva, única arma que deveria contar.

***

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

 

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