A rua deserta e dentro de casa

Marília Garcia

Cartão postal enviado do Rio de Janeiro para a França em novembro de 1914

 

“Um homem eu caminho sozinho

nesta cidade sem gente

as gentes estão nas casas

a grippe”

 

Assim começa o Mez da grippe, de Valêncio Xavier, primeiro livro que peguei na estante logo que começou a quarentena. Ontem saí depois de duas semanas em isolamento e tive calafrios ao lembrar da cena descrita pelo “protagonista” do livro. A rua deserta, as gentes nas casas, a gripe. Passou por mim um único homem durante todo o trajeto que fiz, ele estava com um lenço na mão, me olhou e disse, meus olhos estão ardendo muito.

Novela, livro-colagem, romance gráfico, diário de apropriações: muitas etiquetas cabem para o livro de Valêncio Xavier, mas nenhuma parece dar conta. Com formato de diário (de 20 de outubro e a 3 dezembro), ele é composto por notícias variadas de dois jornais curitibanos que vão sendo montadas com outros textos, como as muitas falas de “Dona Lúcia”, uma sobrevivente da gripe, datadas de 1975 e 76:

 

“Como saber quantos morreram? O governo não ia dizer o número verdadeiro dos mortos para não alarmar. Até hoje, ninguém sabe ao certo.”

Dona Lúcia, 1976

 

Também aparecem anúncios diversos (por exemplo, de uma funerária da cidade),  intervenções gráficas de todo tipo – cartões postais, desenhos de rostos, cruzes –, falas de autoridades acerca da situação da epidemia e vozes que podem ser falas de personagens específicos, como este protagonista citado no início que caminha pela cidade e entra nas casas, identificado por uma leitura muito bonita do livro feita por Flora Süssekind (em Papéis colados).

Em meio ao material recortado do jornal, as negociações para o armistício de 1918, as notícias sobre a gripe e recortes da seção “vida social”; por exemplo, sobre os cinemas que, primeiro, devem ser fechados, depois voltam a funcionar 3 vezes por semana e, por fim:

 

“Os cinemas fecharam

A gripPe torna-se contagiosa

Sete dias por semana

 

Agora está mesmo morrendo muita gente.”

 

**

Neste momento emergencial, em que estamos suspensos por uma situação coletiva de exceção, ficamos sem palavras. Uma pergunta que sempre fiz me volta agora: o que as pessoas se dizem em momentos difíceis e extraordinários? Por exemplo, durante uma guerra? Como a vida acontece nestes momentos? Estou falando do dia-a-dia, do rés-do-chão, o que acontece na intimidade de casa, nas palavras entre dois? O que as pessoas dizem umas para as outras?

 

Um dia, encontrei um cartão postal enviado do Rio de Janeiro para a França em novembro de 1914, já com a primeira guerra em curso. É ele que abre esta coluna. Ontem, ao chegar da rua deserta, fui reler este cartão. Gosto tanto dele que coloquei no final do meu último livro, Parque das ruínas. E peço licença para usá-lo aqui outra vez, em outro contexto, pois apesar da tristeza, ele fala sobre ter confiança e coragem. E porque as palavras são tudo o que temos para poder seguir adiante. Um beijo nas crianças.

 

“10 de novembro de 1914

Meus queridos

Queridos amigos

Neste momento de tanta dor, que alento seria receber notícias de vocês. Estou triste mas cheia de confiança e coragem. Lamento não poder ajudar. Gostaria tanto de estar perto e dividir o pesar. Penso muito e com todo o afeto em vocês. Um beijo nas crianças.”

 

***

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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