5 razões para ler "A educação sentimental", de Gustave Flaubert, em clubes de leitura

Pedro Schwarcz

 

1. O contexto da obra flaubertiana reflete os tempos atuais, não necessariamente pela consonância entre contextos políticos (o romance se passa ao longo da Revolução de 1848 na França ‒ revolução que instaurou a Segunda República e posteriormente o Segundo Império ou o segundo 18 de Brumário¹), mas, sobretudo, pela radiografia das relações sociais em tempos de instabilidade política. A “história moral” de sua geração que Gustave Flaubert constrói nesse romance, ou a história sentimental, passa longe de qualquer retórica moral. A pena afiada do mestre do realismo francês cria personagens confusos e em conflito com seu tempo, seus ideais e suas aspirações de ascensão.

 

2. O estilo inovador da narrativa de Gustave Flaubert, em especial nesse romance, é essencial para a formação do romance moderno, principalmente pelo uso mais frequente do discurso indireto livre. Isso se dá quando Flaubert funde a descrição rica e rígida — típica do romance realista do século XIX — com deslocamentos narrativos, memórias, anseios, imagens, monólogos interiores, fusão dos discursos narrativos do autor aos discursos e falas dos personagens e devaneios que preenchem um espaço para além do espaço físico. Sob a óptica do protagonista, Flaubert subverte a narrativa tradicional, realçando o olhar subjetivo de Frédéric Moreau, personagem central, impondo assim um tom impressionista ao romance.

 

3. A composição de um romance histórico e político sob o ponto de vista de um burguês fracassado da província, que busca, a qualquer custo, sua inserção na alta sociedade residente na capital francesa, bem como a conquista de um amor impossível com uma mulher casada. O certo é que Flaubert compõe como ninguém o retrato de uma pequena burguesia, ao mesmo tempo arrivista e romântica, que displicentemente apoia ideais republicanos revolucionários, mas não consegue quebrar as barreiras comezinhas dos costumes e anseios de sua classe. Frédéric é um jovem estudante que não aprende nada de exemplar e vive embriagado por sonhos e ideais sempre distantes do mundo real, compondo assim uma versão masculina do bovarismo e de Emma Bovary, personagem de outro romance icônico de Flaubert, Madame Bovary.²

 

4. Frédéric, o protagonista do romance, encarna como ninguém a figura do flâneur, personagem dos mais icônicos da Paris do século XIX, que vai preencher os ensaios de Walter Benjamin acerca da obra do poeta Charles Baudelaire. O protagonista de A educação sentimental, à semelhança do flâneur de Benjamin e Baudelaire³,  é um burguês deslocado, vagando errantemente pela cidade de Paris, perdido no microcosmo urbano, mas vigilante como uma espécie de detetive. A cidade de Paris, aos olhos do protagonista, ganha reflexos fantasmagóricos e multifacetados, prontamente farejados por Frédéric em suas múltiplas texturas, seus sinais e sons. O personagem central do romance é fruto da modernidade da era burguesa industrial, mas se projeta e se enxerga sempre à margem dessa mesma sociedade da qual provém. Um jovem confuso que, vivendo em meio à turba e perseguindo objetivos mesquinhos, retrata a partir de sua óptica, um tanto deslocada, seu próprio tempo. Ele se perde em devaneios, não compreende nada do que enxerga, mas reflete e é reflexo de sua época.

 

5. A edição da Penguin-Companhia conta com prefácio da psicanalista Maria Rita Kehl, estabelecendo relações entre as obras A educação sentimentale Madame Bovary, e com posfácio de Marcel Proust, um ensaio acerca do estilo inovador da prosa de Flaubert. Além disso, também conta com a tradução cuidadosa de Rosa Freire D’Aguiar, uma de nossas melhores tradutoras.

 

Resumo do enredo:

Frédéric Moreau é um pequeno-burguês da província que descende de uma família de fidalgos depauperada. Com a herança da mãe liquidada, ele aguarda uma razoável fortuna a ser herdada de seu tio paterno e sonha com uma vida bem-sucedida em Paris. No caminho para uma visita à terra natal conhece o sr. Arnoux, um burguês comerciante de obras de arte e dono de um jornal, e sua esposa, a sra. Arnoux. O sr. Arnoux é um burguês arrivista, que vive dando golpes e trambiques e explorando os artistas com os quais trabalha. Frédéric se encanta, de imediato, com a esposa do trambiqueiro. De volta a Paris, passa a frequentar a loja e o jornal do sr Arnoux, L’Art Industriel, por intermédio de Hussonet, jornalista, boêmio e com ambições de dramaturgo, que justamente trabalhava para o sr. Arnoux.

Charles Deslauriers, amigo de infância de Frédéric, com quem compartilhou uma vida inteira de sonhos, ideais e aspirações, tem um temperamento que acaba por se contrapor ao rapaz, em seus desvarios. Filho de um ex-membro da infantaria e baixo funcionário público, Deslauriers não conta com nenhum dinheiro caído do céu. Trata-se de um jovem que se faz advogado, é mais idealista que o amigo e se revolta com sociedade injusta a seu redor. Ao contrário de Frédéric, ele não vive iludido em busca de ascensão e prestígio, nem perde o prumo por paixões platônicas. Pede dinheiro a Frédéric em determinado momento de necessidade, com o intuito de abrir com Hussonet um jornal político, mas Frédéric prefere salvar a sra. Arnoux da falência. Deslauriers não deixa de ambicionar o poder, mas para levar à frente projetos pessoais maiores, não por prestígio e vaidade. 

Junto com Deslauriers e mais alguns colegas que conheceu na loja e no jornal de Arnoux, Frédéric forma um grupo de amigos que se encontra aos fins de semana para discutir os assuntos que permeiam o conflituoso momento político. Essas são conversas influenciadas pelo vinho e que sempre terminam em retóricas vazias e brincadeiras internas. Dentre eles estão Hussonnet, jornalista; Sénécal, professor de matemática e socialista ferrenho; e Pellerin, o artista de esboços e retratos e que está sempre nervoso com as explorações de Arnoux. O grupo ainda conta com Dussardier, empregado do comércio socorrido por Frédéric e Hussonet ao ser preso pela polícia em uma das grandes insurreições da época.

Frédéric, cada vez mais próximo de Arnoux por causa da obsessão que tem por sua mulher, desenvolve intimidade e simpatia pelo burguês fanfarrão, a ponto de conhecer de perto suas amantes e ajudar a salvá-lo e a sua mulher da bancarrota. Além disso, passa a partilhar de uma de suas amantes após perder as esperanças com as desventuras e desencontros de suas investidas infelizes junto a sra. Arnoux. Trata-se de Rosanette, uma moça pobre, filha de operários, uma espécie de cortesã frequentadora da nobreza remanescente do pós-Revolução Francesa e da jovem alta burguesia, mulher que vive de prestar e receber favores.

O jovem Moreau faz de tudo para subir na sociedade, travando contato com um banqueiro, o sr. Dambreuse, por meio de uma recomendação do sr. Roque, vizinho da província e administrador dos negócios do burguês. Dambreuse é membro da nova burguesia e velha aristocracia, influente no mundo dos negócios, dono de muitos empreendimentos, e propõe a Frédéric a venda de ações e a abertura de uma sociedade, mas o jovem falha em qualquer responsabilidade ou trabalho. Ocioso, romântico e bovarista, Frédéric anseia tudo que não está a seu alcance e ambiciona cargos altos por meio de contatos na alta sociedade, ao mesmo tempo que sonha com o amor de uma mulher comprometida e desenvolve um relacionamento com duas amantes. Além da amante do marido de seu grande amor, passa a se relacionar com a srta. Dambreuse, com o objetivo de se inserir mais e mais na alta sociedade parisiense. Além disso, fica noivo da jovem Louise, filha de seu vizinho de renda considerável, Roque. A moça, por sua vez, é filha de um relacionamento do pai com uma serviçal e concubina, sofre todo o julgamento e preconceito de seus vizinhos e se encanta com Frédéric de forma pueril e inocente.

Levado por alguns de seus amigos mais idealistas às manifestações de 1848, Frédéric tenta cargos na política com a ascensão da Segunda República, mas falha em absolutamente tudo. Flaubert compõe em seus personagens espelhos claros de uma época caótica e cínica, em que os conflitos de interesses que regem os relacionamentos, as relações sociais e as instituições fazem dos homens de seu tempo meros arremedos de românticos arrivistas, idealistas fúteis, intelectuais sem profundidade e eternos insatisfeitos. Os personagens de Flaubert são homens deslocados no vazio e no vácuo entre a sociedade vigente e seus sonhos.

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1 Contexto histórico analisado  por Karl Marx  em O 18 de Brumário de Napoleão Bonaparte
2 Conceito definido pelo psiquiatra Jules de Gaultier em 1892, inspirado no romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, que definia certas personalidades deslocadas que concebem a si mesmo com uma visão diferente do que se é, sempre ambicionando uma realidade distante da que vive. Definido pelo autor como “todas as formas de ilusão do eu”.
3 Passagens, Walter Benjamin, editora UFMJ; Baudelaire e a modernidade, Walter Benjamin, editora Autêntica; Obras escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, Walter Benjamin, editora Brasiliense; Um pintor da vida moderna, Charles Baudelaire, editora Autêntica, Sobre a modernidade, Charles Baudelaire, editora Paz e Terra.

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Pedro Schwarcz é ator, formado no curso profissionalizante do Teatro Escola Célia Helena, e coordenador dos Clubes de Leitura Penguin-Companhia. Trabalhou nos espetáculos Querô, uma reportagem maldita, de Plínio Marcos, com o Grupo Folias, dirigido por Marco Antonio Rodrigues; Medida por medida, de William Shakespeare, também com o Grupo Folias, dirigido por Val Pires, entre outros.